01.
Elogio à Bodhichitta
[A mente da iluminação ou Bodhichitta é o voto de atingir a iluminação com o fim único de libertar todos os seres do sofrimento e de conduzi-los ao estado de Buddha. Trata-se também do conjunto de práticas que permitem a realização deste voto. Os capítulos 1, 2 e 3 explicam como desenvolver a Bodhichitta. Os capítulos 4, 5 e 6 explicam como mantê-la. Os capítulos 7, 8 e 9 explicam como aumentar a Bodhichitta. Finalmente, o capítulo 10 trata da dedicação dos méritos.]
[1] Homenagem aos Sugatas dotados do Dharmakaya. Homenagem aos seus filhos e a
todos os que são veneráveis. Eis aqui, brevemente exposta, e segundo a tradição, a
prática espiritual dos filhos dos Buddhas.
[Sugata, "chegado à felicidade", é um epíteto dos Buddhas ou "iluminados". Dharmakaya, "corpo absoluto", é um dos três corpos dos Buddhas, juntamente com o corpo de manifestação (Nirmanakaya) e o corpo de fruição (Sambhogakaya). Segundo os comentários, o Dharmakaya é considerado aqui como uma qualidade do Buddha. Segundo outros, o Dharmakaya corresponde aos ensinamentos (Dharma) de Buddha, e a frase seria: "Homenagem aos Sugatas [Buddhas], aos seus filhos [Sangha] e ao corpo do Dharma..." Os filhos dos Buddhas são os Bodhisattvas, "seres da iluminação" que progridem até o estado búddhico, aprofundando a sua realização da vacuidade unida à compaixão.]
[2] Tudo o que vou dizer já foi dito antes de mim, que sou fraco escritor. Sem pretensão
de ajudar quem quer que seja, é com o intuito de ordenar a minha mente que vou
escrever esta obra.
[3] Que ela ao menos sirva para aumentar a torrente da minha fé que favorece o que é
bom. E se além disso alguém, parecido comigo, pousar aqui o seu olhar, ser-lhe-á
também oferecido bom proveito.
[4] As condições favoráveis são muito difíceis de conseguir, elas que, uma vez
encontradas, satisfazem todos os fins do homem. Se desde já não tirarmos proveito
desta oportunidade, como poderá ela surgir de novo?
[As dez condições favoráveis são, juntamente com as oito liberdades, indispensáveis se quisermos progredir para a iluminação. As oito liberdades são: [1] não ter nascido nos infernos; [2] no mundo dos fantasmas famintos; [3] no reino animal; [4] entre os semideuses; [5] entre os deuses de longa vida; [6] entre os homens com visões errôneas; [7] em uma época obscura durante a qual nenhum Buddha tenha aparecido; [8] ou com uma deficiência mental que impeça a compreensão do sentido do Dharma. As dez condições favoráveis são: [1] ter uma existência humana; [2] ter nascido num lugar onde o Dharma existe; [3] possuir todas as faculdades físicas e mentais; [4] não agir em contradição com o Dharma; [5] ter fé nos que são dignos dela; [6] é também necessário que um Buda tenha aparecido durante a nossa era; [7] que ele tenha exposto o Dharma; [8] que os seus ensinamentos subsistam; [9] que eles sejam postos em prática; [10] e, enfim, que um mestre espiritual esteja presente para nos guiar.]
[5] Assim como numa noite em que as nuvens adensam ainda mais as trevas, o
relâmpago pode às vezes brilhar, também às vezes, pelo poder dos Buddhas, o
pensamento dos homens pousa por um breve instante sobre o bem.
[6] Assim, o bem é sempre frágil e o poder do mal tão forte e terrível... se não fosse a
Bodhichitta, que outro bem o poderia vencer?
[7] Durante muitos Kalpas os Buddhas meditaram, até que, por fim, viram deste bem as
benfazenças que fazem transbordar de alegrias o imenso rio dos seres sencientes, numa
inundação de felicidade.
[Segundo a cosmologia buddhista, os mundos (chakravala) estão submetidos a um processo alternativo de formação e dissolução. O período que decorre entre o início de um mundo e a formação do mundo seguinte é chamado de mahakalpa (grande ciclo); este é formado por quatro períodos incomensuráveis (asankhyeya-kalpa) que correspondem às fases de formação, duração e dissolução do mundo, mais o período intermediário de caos que precede a formação de um novo mundo. Cada asankhyeya-kalpa contém vinte antara-kalpas. Um antara-kalpa é o período durante o qual a duração da vida humana, que é de dez anos à partida, cresce até a tingir a duração de um asankyeya-kalpa e de novo decresce até dez anos. O fim de cada antara-kalpa é marcado por sete dias de guerra, sete meses de epidemias e sete anos de fome.]
[8] Quem queira passar além das imensas dificuldades desta vida, afastar todas as dores
das criaturas e desfrutar centenas e centenas de alegrias, que jamais abandone a
Bodhichitta.
[9] Qualquer infeliz, acorrentado à prisão das existências, é, nesse mesmo instante,
proclamado Filho dos Buddhas; hei-lo venerável aos olhos dos deuses e dos homens
assim que nele surge a Bodhichitta.
[10] Pegando neste corpo impuro, faz dele a inestimável imagem de ouro que é um
Buddha. Por isso, guardai com fervor este elixir alquímico que se chama Bodhichitta.
[11] Ela foi vista e reconhecida de valor supremo pela vasta inteligência dos guias
sublimes da caravana humana. Guardai-a firmemente, esta jóia que é a Bodhichitta, oh
vós que desejais romper com o fado dos seres sencientes!
[12] Assim como uma árvore que morre ao dar o seu fruto, todos os outros méritos se
acabam. Só a Bodhichitta é uma árvore que sempre frutifica e nunca se esgota.
[A árvore referida é uma bananeira-da-terra. A palavra tibetana para esta planta é chushing, que significa "árvore da água". Designa uma planta freqüente na Índia que é oca e morre ao dar o seu fruto.]
[13] O mais execrável dos criminosos, se se apoiar nela, liberta-se nesse mesmo instante,
como quem se livra de um grande perigo protegido por um herói. Como pode haver
gente inconsciente que não se refugie na Bodhichitta?
[14] Como o incêndio do fim do mundo, a Bodhichitta consome num ápice os maiores
erros; os seus infinitos benefícios foram expostos pelo sábio Maitreya a Sudhana.
[Ver o Gandavyuha Sutra.]
[15] A Bodhichitta é dupla; ela é, em suma, o voto da iluminação e o partir para a
iluminação.
[16] Elas têm entre si, segundo os sábios, a mesma diferença que há entre querer fazer
uma viagem e se colocar a caminho.
[17] O voto da iluminação dá imensos frutos neste mundo, mas não é, ao contrário da
partida para a iluminação, uma fonte contínua de méritos.
[18-19] Logo que a mente tenha abraçado com tenacidade o pensamento de libertar a
vastidão ilimitada dos seres, mesmo que às vezes se distraia ou dissipe, o fluxo dos seus
méritos continua sempre a aumentar, assim como a infinita vastidão do céu.
[20] Isso mesmo explicou Buddha no Discurso das Questões de Subahu, em proveito
dos que apenas têm um ideal inferior.
[Subahuparipriccha Sutra; o original sânscrito perdeu-se e foi retraduzido do chinês. É dito neste discurso que, se o voto de libertar os seres impregnar totalmente a nossa mente, os nossos méritos não param de aumentar, mesmo durante o sono ou quando estamos distraídos.]
[21-22] Se aquele que formula o benemérito projeto de curar o simples mal-estar de
uns poucos homens adquire um imenso mérito, muito mais adquirirá quem quer libertar
a todos de um sofrimento infinito e que a todos quer dotar de infinitas qualidades!
[23] Qual é a mãe, qual é o pai capaz de um voto tão generoso? Qual o deva, qual o
rishi, qual o brâmane?
[Os devas são os deuses de longa vida. Os rishis, segundo a tradição hindu, são os sábios inspirados que ouviram a palavra dos Vedas e a transmitiram ao mundo; formariam uma classe distinta entre os deuses e os homens. Os brâmanes são os membros da casta religiosa da Índia, considerada a mais elevada na tradição hindu.]
[24] Nunca nenhum deles fez, mesmo sonhando, semelhante voto para si próprio.
Como o poderia imaginar para os outros?
[25] É extraordinária esta jóia da mente, voltada para o bem. O seu nascimento é
totalmente inédito, se tivermos em conta que os outros nem sequer a concebem no seu
próprio interesse!
[26] Fonte da alegria do mundo, remédio à dor do mundo, diamante espiritual, como medir todo o mérito que a Bodhichitta contém?
[27] Um simples voto para o bem do mundo vale mais do que a veneração do Buddha;
quanto mais ainda se lhe juntarmos o esforço de propiciar a felicidade integral de todos
os seres!
[28] Os homens querem escapar ao sofrimento e mergulham no sofrimento. Desejam a
felicidade e destroem estouvadamente a felicidade, como se ela fosse o verdadeiro
inimigo!
[29-30] Sequiosos de felicidade e torturados de mil maneiras... Quem os saciará com
todas as alegrias, quem os arrancará de vez à tortura e acabará com esta loucura? Onde
encontrar alguém de tamanha bondade, tal amigo, tal mérito?
[31] Se mesmo aquele que presta um serviço em pagamento de outro é louvado, o que
dizer do Bodhisattva, que é generoso sem ser solicitado?
[O Bodhisattva liberta-se do Samsara, o ciclo das existências, desenvolvendo todas as qualidades da
iluminação, mas ao mesmo tempo, por compaixão, manifesta-se para ajudar os seres. Jamais age com interesse pessoal; todas as suas ações, palavras e pensamentos são consagrados ao bem dos outros.]
[32-33] Quem oferece uma refeição de caridade a algumas pessoas ganha fama de
benfeitor, só porque deu, durante alguns instantes e com desdém, um magro pitéu que
mal dará sustento aos pobres durante meia jornada. O que dizer daquele que dá a um
número infinito de seres, e durante um tempo infinito, a satisfação inultrapassável dos
Sugatas, aquela que sacia todos os desejos?
[34] Qualquer pessoa que, diante deste anfitrião que é o Bodhisattva, desenhe em seu
coração maus pensamentos, encontrar-se-á nos infernos e aí ficará por tantos os Kalpas
quantos os maus pensamentos. Assim o disse Buddha.
[35] Mas quando o coração de alguém se lhe dirige com devoção, a esse ser-lhe-á
servido um fruto ainda maior. Confrontado com as piores dificuldades, um Bodhisattva
jamais se submete ao mau agir, enquanto que as suas boas ações se multiplicam sem
esforço.
[36] Presto homenagem aos corpos dos Bodhisattvas, nos quais nasceu a jóia desta
mente sublime [que é a Bodhichitta]. Tomo refúgio nestas minas de felicidade, que
mesmo se as ofendemos nos dão ainda a felicidade.
[Adaptado de O Caminho para a Iluminação — Bodhicaryavatara. Coleção Espiritualidades, série Budismo,
sob a direção do Ogyen Kunzang Chöling. Escrito por Shantideva, tradução para o português por Filipe
Valente Rocha e outros praticantes da escola do Budismo tibetano Ogyen Kunzang Chöling. Lisboa: Livros
e Leituras, 1998. Pág. 27-33. O texto foi gentilmente transcrito por Sherab Chötso.]
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