A Confissão
[1]
Para conquistar esta jóia que é a Bodhichitta, presto homenagem aos
Buddhas, à jóia
pura
do Dharma supremo e aos filhos dos Buddhas [Sangha], oceanos de
mérito
espiritual.
[Dharma
é o conjunto dos ensinamentos dados pelos Buddhas e pelos
mestres realizados que mostram o caminho
para a iluminação. Há dois tipos: o Dharma das escrituras, que é
o suporte destes ensinamentos, e
o Dharma da realização, que é o resultado da prática espiritual.
Sangha é a
assembléia dos discípulos do Buddha.]
[2-6]
Todas as flores e todos os frutos, as ervas medicinais e todos os
tesouros do
universo,
as águas puras e deliciosas, as montanhas feitas de preciosas gemas,
as
encantadoras
solidões dos bosques, as lianas lindíssimas ornadas de flores, as
árvores
com
os ramos vergando sob o peso dos frutos, os perfumes dos mundos
divinos e
humanos,
a árvore dos desejos e as árvores de pedrarias resplandecentes, os
lagos
espargidos
de flores de lótus e suspensos no canto dos cisnes, as plantas
silvestres e as
de
cultivo, e tudo o que é nobre ornamento disseminado na imensidão do
espaço, tudo
isto,
que não pertence a ninguém, considero-o na minha mente e ofereço-o
aos
Buddhas,
sublimes entre os seres e aos seus filhos. Possam aceitá-los, tão
dignos são
das
mais belas oferendas! Possam os grandes compassivos ter compaixão de
mim!
[Segundo
as mitologias hindu e buddhista, as árvores dos desejos ou
Kalpadrumas são
as cinco árvores celestiais
que dão como fruto tudo aquilo que desejamos.]
[7]
Não tenho o menor mérito e sou tão pobre que nada mais posso
oferecer. Hajam
por
bem os protetores — sempre pensando no bem dos outros —, graças
aos deus
poderes,
receber estas oferendas para o meu bem!
[8]
Eu mesmo me ofereço para toda a eternidade aos Jinas e aos seus
filhos. Admitamme
ao
vosso serviço, oh seres sublimes! É com devoção que me faço
vosso servidor.
[Jina,
"vitorioso", "vencedor" ou "conquistador",
é um epíteto dos Buddhas.]
[9]
Agora, aceite ao vosso serviço, acabou-se o medo. Trabalho para o
bem de todos os
seres,
escapei aos danos antigos e não renovo o nefasto agir.
[10-11]
Em termas perfumadas e que encantam os olhos com as colunas
esplêndidas de
jóias,
cortinas resplandecentes bordadas a pérolas e lajes de puro e
brilhante cristal,
com
muitas jarras incrustadas de gemas preciosas, transbordando de água
perfumada,
ao
som de cânticos e de música, preparo os banhos dos Buddhas e de
seus filhos.
[12]
Com toalhas sem igual, impregnadas de incensos, impecáveis e
imaculadas, secolhes
o
corpo e visto-os, com túnicas sedosas e perfumadas.
[13]
Com roupas etéreas, delicadas, finíssimas, esplendentes, e com
profusos
ornamentos,
adorno Samantabhadra, Ajita, Manjushri, Lokeshvara e os outros
Bodhisattvas.
[Samantabhadra
é o Bodhisattva que simboliza a oração e a oferenda sem limites; o
Bodhiattva Ajita- Maitreya
é o Buddha do futuro; o Bodhisattva Manjushri personifica a
sabedoria perfeita; e Lokeshvara, ou
Avalokiteshvara, é o Bodhisattva da compaixão.]
[4]
Com fragrâncias delicadas, de perfume penetrando até aos confins do
universo, unjo
os
corpos de todos o Buddhas, resplandecentes como ouro purificado,
lustroso e
polido.
[15]
Com todas as flores de perfume inebriante, o jasmim, o lótus azul e
a eritrina, com
graciosas
guirlandas, honro os tão veneráveis Buddhas.
[16]
Ofereço-lhes nuvens de incenso que alegram o coração, com o seu
sutil e
envolvente
perfume. Presto-lhes homenagem com vasto sortido de alimentos e
bebidas
celestiais.
[17]
Dispostos em leitos de lótus de ouro, acendo lamparinas de pedrarias
preciosas e
lanço,
ao longo de lajes polidas de perfume, punhados de pétalas de flores
encantadas.
[18]
Ofereço a estes misericordiosos inconcebíveis palácios celestiais
decorados de
magníficas
grinaldas de pérolas e de jóias, ornamentos de um céu sem limite,
reverberando
melodiosos hinos.
[19]
Aos possantes Buddhas apresento altos pára-sóis com requintadas
pedrarias, de
cabos
em ouro e grácil forma, incrustados de pérolas e de um brilho
estonteante.
[20]
Que se levantem nuvens de cantos e toadas que deleitam o coração,
nuvens de
oferendas
que apaziguam a dor dos seres!
[21]
Sobre todas as jóias do supremo Dharma, sobre Stupas e estátuas,
caiam chuvas
contínuas
de flores, jóias e substâncias preciosas!
[As
jóias do Dharma supremo são os doze tipos de textos sagrados: os
ensinamentos orais do Buddha (sutram),
os cantos versificados (geuam),
as profecias (vyakaranam),
os poemas sagrados (gatha),
as instruções
enunciadas pelo Buddha sem que tenha sido solicitado (udanam),
as explicações preliminares aos
ensinamentos (nidanam),
as parábolas (avadanam),
as histórias e as lendas (itivrittakam),
as histórias sobre
as vidas anteriores do Buddha (jatakam),
as explicações detalhadas (vaipulyam),
os ensinamentos extraordinários
(adbhuta-dharma),
os ensinamentos essenciais e concludentes (upadesha).
Stupas são relicários
buddhistas.]
[22]
Assim como Manjushri e outros Bodhisattvas satisfizeram os Jinas com
oferendas,
também
eu faço oferenda aos Buddhas e aos seus filhos.
[23]
Com hinos lindos, marés de ritmos harmoniosos, exalto os que são
oceanos de
mérito;
que sem cessar estes cânticos de louvor se levantem em revoada para
eles!
[24]
Prostro-me diante dos Buddhas dos três tempos, do Dharma e da
suprema Sangha,
com
tantos os corpos quantos os átomos que hajam em todos os Campos de
Buddha.
[Os
três tempos são o presente, o passado e o futuro. Os campos de
Buddha (Buddhakshetra),
ou terras puras,
são os mundos onde os Buddhas aparecem e ensinam. Há uma infinidade
para além do nosso mundo
terrestre, que é considerado o ampo do Buddha Shakyamuni.]
[25]
Salve todos os Stupas e todos os suportes do Bodhichitta! Homenagem
aos
mestres
espirituais e aos ascetas veneráveis!
[26]
Refugio-me no Buddha até ao coração da iluminação; refugio-me no
Dharma e na
vasta
Sangha dos Bodhisattvas.
[Esta
é a fórmula de refúgio nas Três Jóias.]
[27]
Com as mãos juntas, dirijo-me aos Bodhisattvas misericordiosos e aos
Buddhas que
vivem
em todas as direções do espaço.
[Aqui
começa a confissão das ações negativas (papadeshana)
que dá o título a este capítulo. O que precede
é designado pelas expressões de homenagem (vandana)
e oferenda (pujana).]
[28-29]
Todo o mal que fiz ou causei, embrutecido e estúpido na eternidade
das
transmigrações
ou na presente vida, todo o mal que na minha cegueira aprovei, para
minha
perdição, confesso-o, consumido de remorsos.
[30-31]
Todas as ofensas que cometi, subjugado pelas emoções, em ultraje às
Três Jóias
ou
contra o meu pai e mãe, contra os mestres e todos os demais, quer
por atos,
palavras
ou pensamentos; todo esse pernicioso agir que cometi, afligido pelos
múltiplos
vícios,
tudo isto confesso, oh condutores do mundo!
[32]
Como escapar a estas faltas? Apressai-vos para me salvar, não vá a
morte chegar e
eu
por me redimir!
[33]
É que a morte não se perde em considerações pelo que está ou não
por fazer. Que
ninguém
se fie nela, de boa saúde ou doente, a vida pode partir de
improviso.
[34]
Vezes sem conta o prazer e o desagrado foram para mim ocasião de mal
agir.
Como
pude esquecer que um dia teria de abandonar tudo e partir?
[35]
Os que me incomodaram já não estarão aqui, os que me agradaram
também não, e
até
eu já não existirei; aliás, nada subsistirá.
[36]
O que agora percebo não passará de uma lembrança, assim como as
coisas que
nos
atravessam os sonhos, passageiras, fugazes... nunca mais as veremos.
[37]
Durante a minha permanência neste mundo, muitos se foram, uns
amigos, outros
inimigos,
mas o mal que cometi por causa deles continua sempre presente, como
uma
ameaça
que não me larga.
[38]
Estou de passagem nesta terra, foi isso que não compreendi. Quanto
mal não
cometi
por ignorância, por apego ou por ódio...
[39]
Noite e dia, sem parar, a vida vai escorrendo e nenhum ganho a fará
crescer: é tão
inevitável
morrer!
[40]
Aqui mesmo, deitado no leito, ainda que rodeado pelos meus, terei de
suportar
sozinho
os sofrimentos da agonia.
[41]
Quando somos agarrados pelos mensageiros de Yama, o senhor da morte,
de que
valem
parentes e amigos? Só o bem me pode trazer a salvação, mas o bem,
esqueci-me
de
praticá-lo...
[O
senhor da morte é Yama Dharmaraja, cujos enviados vêm atormentar os
seres depois da morte e, se tal for
o karma desses seres, os empurram para os reinos inferiores.]
[42]
Por apego a esta vida efêmera, por ignorância do perigo, por
frivolidade, fiz muito
mal,
oh protetores!
[43]
O condenado que arrastam para lhe cortarem um membro está crispado
pelo
terror,
a sede devora-o, a vista foge-lhe e fica transfigurado.
[44]
Que será de mim quando os terríveis mensageiros de Yama me
agarrarem,
esgazeados
pelo medonho assombro e pelo terrível desprezo?
[45]
Os meus olhos, desorbitados pelo terror, procurarão em todos os
cantos maneira
de
me salvar. Quem, por bondade, me virá livrar deste enorme perigo?
[46]
Vendo o espaço vazio de qualquer socorro, mergulhando numa obscura
loucura, ai
de
mim, que farei nesse lugar tenebroso?
[47]
É desde já que apelo aos possantes guardiões do mundo, aos Jinas
que dissipam
todos
os medos e guardam uma constante diligência para a proteção do
mundo!
[48]
Apelo do fundo do coração ao Dharma por eles realizado, que destrói
os medos da
transmigração,
e apelo à multidão dos Bodhisattvas.
[49]
Perdido de medo, entrego-me a Samantabhadra; dou-me inteiramente a
Manjushri.
[50]
Ao protetor Avalokiteshvara, cujos atos são todos eles conduzidos
pela compaixão,
lanço
o meu grito de dor e de medo: protegei-me, a mim, o malfeitor!
[51]
Ao nobre Akashagarbha e a Kshitigarbha, a todos os protetores
compassivos,
suplico:
guardai-me!
[52]
E àquele cuja simples aparição aterroriza e põe em fuga nas
quatro direções os
mensageiros
da morte e os outros opressores, saudações a Vajrapani.
[Vajrapani,
com Manjushri e Avalokiteshvara são os três Bodhisattvas chamados
protetores das Três Famílias.]
[53]
Transgredi a vossa palavra e agora, estarrecido face ao perigo,
refugio-me em vós;
apressai-vos
a escorraçar este perigo!
[54]
Se quando receamos uma simples doença passageira, seguimos sem
violar a
prescrição
do médico, quanto mais quando estamos corroídos pela cobiça e
pelas
quatrocentas
e quatro doenças.
[55]
Ora, há doenças para as quais o universo inteiro não contém
remédio e das quais
uma
só bastaria para destruir todos os habitantes do Jambudvipa.
[Jambudvipa
é o nosso mundo, ao sul do Monte Meru.]
[56]
E eu violo a palavra do médico onisciente que cura todas as dores!
Que vergonha,
que
insensatez!
[Médico
onisciente é um epíteto do Buddha.]
[57]
Se sigo com tanta prudência quando caminho à beira de um
precipício, porque sou
tão
desleixado nesta beira inferno, se este abismo é fundo de milhares
de léguas e se
estende
na imensidão do tempo?
[58]
"A morte não há de chegar hoje!" Que falsa certeza! A
hora de deixar tudo
aproxima-se,
inexorável!
[59]
Quem acalmará o meu terror? Como poderei escapar? Virá o dia em que
deixarei
de
existir! Como a minha mente pode estar tranqüila?
[60]
Que fruto me restará de todos os prazeres de outrora, hoje abolidos,
nos quais me
regozijei,
em despeito da palavra do mestre?
[61] Ao deixar o mundo dos vivos,
deixando parentes e amigos, irei só, mas não sei para
onde. Que me importam então amigos ou
inimigos?
[62] Uma só preocupação me deve
ocupar noite e dia: as ações negativas produzem
necessariamente a dor; como hei de me
livrar delas?
[63-64] Os atos inconfessáveis que
cometi por ignorância ou loucura, atos que são
negativos por natureza ou por
transgressão dos preceitos, confesso-os a todos, com o
devido respeito e receio, as mãos
juntas e prostrando-me sem cessar diante dos
protetores.
[Os atos negativos por natureza são
nomeadamente o ato de matar, o roubo, a má conduta sexual, a mentira, a violência verbal, a
malvadez, etc. As transgressões dos preceitos são as faltas à
regra monástica, para os que tomaram votos.]
[65] Que os guias conheçam as minhas
faltas assim como elas são. Este mal, ó
protetores, nunca mais o voltarei a
cometer.
[Adaptado de O Caminho para a Iluminação — Bodhicaryavatara. Coleção Espiritualidades, série Budismo,
sob a direção do Ogyen Kunzang Chöling. Escrito por Shantideva, tradução para o português por Filipe Valente Rocha e outros praticantes da escola do Budismo tibetano Ogyen Kunzang Chöling. Lisboa: Livros
e Leituras, 1998. Pág. 33-43. O texto foi gentilmente transcrito por Sherab Chötso.]
sob a direção do Ogyen Kunzang Chöling. Escrito por Shantideva, tradução para o português por Filipe Valente Rocha e outros praticantes da escola do Budismo tibetano Ogyen Kunzang Chöling. Lisboa: Livros
e Leituras, 1998. Pág. 33-43. O texto foi gentilmente transcrito por Sherab Chötso.]
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