04.
Aplicar a Bodhichitta
[1] Tendo assim firmemente abraçado a Bodhichitta, que o Bodhisattva, sem olhar para
canseiras, se esforce para não transgredir a regra.
[2-3] Empreendimento que tomamos precipitadamente, sem reflexão madura,
podemos, mesmo após promessa, realizar ou abandonar. Mas o que foi examinado
pelos Buddhas e Bodhisattvas em toda a sua sabedoria, e também atentamente por
mim, porque razão adiá-lo?
[4] Se depois de o ter prometido, não o realizo realmente, enganando assim todos os
seres, qual será o meu destino?
[5] "Aquele que pensou em dar e não deu, tornar-se-á um fantasma faminto", dizem, e
isto mesmo no caso de uma ninharia.
[6] Quanto mais se, tendo proclamado a bom som e do fundo do coração a felicidade
suprema, vier a enganar o mundo inteiro. Como poderei encontrar um destino
afortunado?
[7] Só o onisciente [Buddha] conhece o insondável curso do karma, que liberta os
homens, mesmo quando abandonam a Bodhichitta.
[8] Mas num Bodhisattva esta falha é muito grave, pois, quando falha, está destruindo o
bem de todos os seres.
[9] E quem faz barreira à atividade de um Bodhisattva, ainda que por um instante,
renascerá sem fim nos lugares de tormento, pois no fundo está atacando o bem de
todos os seres.
[10] Se quando comprometemos o bem de um único ser o nosso bem fica
comprometido, quanto não ficará quando se trata de todos os seres que povoam a
imensidão infinita do espaço?
[11] Assim derivando pelo oceano das existências, ora arrastado pelas vagas do errar,
ora pela força da Bodhichitta, recuando e adiando o aportar às terras.
[Aqui, Shantideva faz um jogo de palavras entre os dois sentidos da palavra bhumi: "terra" e "nível"
(estágio) na progressão espiritual do Bodhisattva.]
[12] Portanto, farei escrupulosamente o que prometi! Se hoje mesmo não fizer um
esforço, irei de mal a pior.
[13] Vieram Buddhas sem conta, procurando por todo o lado onde houvesse seres a
socorrer, mas por minha falta nunca estive no alcance do seu poder de curar.
[14] Se agora continuar como sempre fui, o meu fado será os lugares de tormento, a
servidão, as mutilações e as lacerações.
[15] Quando voltarei a reunir o aparecimento de um Buddha, a fé, a condição humana, a
aptidão à prática do bem, todas estas coisas tão difíceis de obter?
[16] A saúde, o pão nosso de cada dia, o dia-a-dia, com o seu quinhão de segurança,
esta vida efêmera, tudo isto é tão enganador... este corpo mais parece uma coisa
emprestada.
[17] Uma coisa é certa: não é com uma conduta como a minha que se obtém de novo o
nascimento humano e fora dele só o mal me espera. E, nesse caso, de onde viria o bem?
[18] Se não o praticar agora, que sou capaz, como o farei mais tarde, quando estiver
embutido pelo sofrimento dos destinos funestos?
[19] A simples menção da palavra "felicidade" é abolida por centenas de milhões de
Kalpas para quem acumula o mal e não pratica o bem.
[20] Por isso o Bhagavan disse, "É tão raro obter a condição humana como é difícil a
uma tartaruga enfiar o pescoço no buraco de um jugo à deriva no oceano."
[Esta comparação, muito freqüente nos textos buddhistas, é desenvolvida no Sutralamkara de
Ashvagosha.]
[21] Por uma falta de um instante ficamos um ciclo inteiro no inferno Avichi. Diante das
más ações acumuladas desde tempos infinitos, como falar de felicidade?
[Avichi é o mais intenso dos dois infernos quentes.]
[22] Se ao menos bastasse sofrer as conseqüências deste agir para se livrar dele, mas
não, porque enquanto as suportamos continuamos a acumular más ações.
[23] Não há pior loucura ou desatino do que ter encontrado uma ocasião semelhante e
não a aproveitar para a prática do bem.
[24] E se depois de o ter compreendido, sucumbo à indolência, por estupidez, condenome
a mim próprio ao sofrimento no momento da morte.
[25] Por muito tempo o meu corpo arderá no insuportável fogo do inferno; por muito
tempo a minha mente rebelde será devorada pelo fogo do remorso. Não há qualquer
dúvida: é assim!
[26] Subi, não sei como, a esta terra favorável, tão difícil de alcançar, e não é que,
conscientemente, sou reconduzido aos mesmos infernos?
[27] Está visto que perdi o juízo! Não sei que feitiço me cega, quem me transtorna,
quem se esconde dentro de mim?!
[28] A cobiça, o ódio e as demais emoções negativas são inimigos sem mãos e sem pés,
desprovidos de coragem e inteligência; como é possível que me tenha tornado escravo
delas?
[As emoções negativas, ou kleshas, são todos os acontecimentos mentais que perturbam e obscurecem a
mente, que nos fazem perder o controle. Estes "venenos interiores" são a causa de todos os nossos
sofrimentos. São principalmente a cobiça, o ódio, a ignorância, o orgulho e a inveja.]
[29] Emboscados na minha mente, atacam-me a seu bel-prazer e eu nem sequer me
irrito! Basta! Que paciência absurda!
[30] Mesmo que tivesse como inimigos todos os Devas e todos os Asuras, juntos não
seriam capazes de me arrastar para o inferno.
[31] Mas as emoções negativas, esses poderosos inimigos, lançam-me, num piscar de
olhos, num fogo tal que até o monte Meru derreteria sem deixar a mais pequena cinza.
[Na mitologias hindu e buddhista, o Monte Meru ou Sumeru é a a montanha axial do Universo, feita de
puro cristal no leste, de safira no sul, de rubi no oeste e de ouro no norte.]
[32] Nenhum outro inimigo tem uma vida tão longa, como a longa vida, sem princípio
nem fim, destas minhas inimigas, as emoções negativas.
[33] O homem paga o bem com o bem; mas as emoções negativas, a quem as serve,
apenas lhes reserva a pior das desgraças.
[34] O seu ódio é constante e vivaz, elas são a única fonte da torrente das misérias e
vivem na minha mente! Como posso viver em paz?
[35] Guardiãs da prisão da transmigração, carrascos dos seres nos infernos e nos outros
lugares de tortura, enquanto forem hóspedes da casa da minha mente, na jaula da
minha cobiça, como poderei saborear a alegria?
[36-38] Por isso, não baixarei os braços até ver estes inimigos aos meus pés,
completamente aniquilados. Por uma coisa de nada, os orgulhosos são capazes de
perseguir um adversário e nem dormem enquanto não o esmagam. Na frente de
batalha desferem golpes terríveis a uns infelizes que, de qualquer modo, a natureza já
tinha condenado ao suplício da morte. Querem lá saber das dores, das feridas, das
flechas e das lanças! Sem darem as costas, continuam sempre até vencer. E eu, que me
ergui para vencer os meus inimigos naturais, autores constantes de todas as minhas
dores, por que razão me deixo levar pelo desespero e pelo abatimento, mesmo à custa
de centenas de misérias?
[39] Há quem exiba as inúteis cicatrizes feitas pelos inimigos. Como posso eu, que me
levantei para realizar um alto feito, desanimar perante os sofrimentos?
[40] Os párias, os lavradores e os pescadores, com a mente concentrada nos meios de
subsistência, são capazes de suportar o calor, o frio e todas as outras misérias. Porque
eu não hei de suportá-los também, para o bem do mundo?
[41] Decidi libertar das emoções negativas o mundo inteiro, nas dez direções do espaço,
mas nem sequer libertei a mim!
[42] Errei ao apreciar o meu valor, falei como um insensato; mas agora, esforçar-me-ei
sem parar e, sem voltar atrás, destruirei as emoções negativas.
[43] Serei um guerreiro implacável, obcecado com uma única idéia: perseguir com ódio
feroz todo e qualquer emoção [negativa], menos a emoção de acabar com todas [elas].
[44] Que seja queimado vivo, que caia a cabeça cortada, mas nunca mais me vergarei
perante estes inimigos que são as emoções negativas!
[45] Um inimigo expulso pode encontrar asilo noutra parte, reunir forças e voltar a
atacar; mas para o inimigo chamado emoção negativa, não existe tal refúgio.
[46] Depois de escorraçado, em que lugar poderia este hóspede da minha mente
preparar a minha ruína? A minha única asneira é ser indolente. As emoções negativas
não passam de vil canalha que foge à vista da sabedoria.
[47] As emoções negativas não vivem nos objetos e não vivem nos sentidos, nem tão
pouco no intervalo, nem em parte alguma. Onde estarão instaladas para atormentar o
mundo inteiro? Simples ilusões! Oh, minha mente, abandona todo o receio e esforça-te
até à sabedoria! Porque te atormentas desnecessariamente nos infernos?
[Adaptado de O Caminho para a Iluminação — Bodhicaryavatara. Coleção Espiritualidades, série Budismo, sob a direção do Ogyen Kunzang Chöling. Escrito por Shantideva, tradução para o português por Filipe Valente Rocha e outros praticantes da escola do Budismo tibetano Ogyen Kunzang Chöling. Lisboa: Livros e Leituras, 1998. Pág. 51-57. O texto foi gentilmente transcrito por Sherab Chötso.]
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