A Paciência
[1] Um só instante de raiva destrói a generosidade, a veneração pelos Buddhas e o bem
que fizemos ao longo de milhares de Kalpas!
[2] Não há vício pior que a raiva nem ascese comparável à paciência. Por isso, devemos
cultivar ativamente a paciência pelos mais diversos meios.
[3] A mente nunca goza a paz, a alegria e o bem-estar, nem vive equilibrada ou dorme
tranqüila, enquanto tiver a fechadura da raiva cravada na mente.
[4] As dádivas, as atenções e a proteção não impedem os que as usufruem de desejar a
perda de um chefe, cujo caráter, de tão duro, se torna odioso.
[5] Até os amigos acabam por se aborrecer; mesmo quando dá, não é servido com
agrado; não há maneira de tornar feliz um homem irascível!
[6] Ora, aquele que, reconhecendo na raiva o inimigo responsável por todos os seus
males, a ataca com energia, não só fica feliz nesta vida como o ficará nas vidas futuras.
[7] Nascido da cobiça insatisfeito ou do receio acontecido, o descontentamento
alimenta a raiva que, assim fortalecido, me levará à ruína.
[8] Destruirei, portanto, o alimento deste inimigo, cuja única função é a de me
assassinar.
[9] Aconteça o que acontecer, a pior das calamidades, a minha alegria não deverá ser
abalada, porque o descontentamento de nada serve e, além do mais, dissipa o mérito
adquirido.
[10] Se houver remédio, ficar descontente para quê? Se não houver remédio, ficar
descontente para quê?
[11] Tememos a dor, a humilhação, as palavras que nos magoam ou desagradam, para
nós e para aqueles de quem gostamos, mas não as receamos para os nossos inimigos,
antes pelo contrário!
[12] O prazer é difícil de encontrar, a dor vem sem ser procurada; ora, é da dor que vem
a aspiração de se libertar, portanto agüenta-se com firmeza, oh minha mente!
[13] Os habitantes do Karnatik e os devotos de Durga infligem-se em vão o sofrimento
de queimaduras e lacerações. Como é possível que eu, que tenho por finalidade a
liberação, seja um covarde?
[14] Nada existe que através do exercício não possa ser realizado. Se nos formos
habituando a sofrimentos ligeiros, acabaremos por ser capazes de suportar sofrimentos
maiores.
[15] Mordidelas de serpentes e de vespas, ataques violentos de comichão, fome, sede e
outras sensações dolorosas, não temos nós de suportar todos estes sofrimentos inúteis?
[16] Frio, calor, chuva, vento, fadiga, prisão, pancadas: preocuparmo-nos com isso só
serve para sofrer mais.
[17-18] Há os que vendo o seu sangue correr redobram de valentia e há os que
desmaiam ao ver correr o sangue dos outros: tudo depende da firmeza ou da
fragilidade da mente; por isso, basta ignorar a dor para lhe resistir.
[19] A dor não perturba a serenidade do sábio. Não é verdade que o sábio se bate
contra as paixões? Ora, não há guerras sem dores.
[20] Os que batalham o inimigo que é a raiva, apesar dos sofrimentos do combate, são
os verdadeiros e heróicos Jinas. Os demais não passam de matadores de mortos!
[21] A dor tem uma grande virtude; é um tal abalo que deita por terra a arrogância,
desperta a compaixão pelos seres, faz recear os atos prejudiciais e desperta o amor pela
virtude.
[22] Ora, se eu não me irrito com a bílis e com os outros humores, apesar de eles serem
causa de grandes sofrimentos, porque hei de me irritar com os seres conscientes?
Também eles são irritados por diversas causas.
[23] Da mesma maneira que os sofrimentos são produzidos pelos humores
involuntariamente, a irritação de um ser consciente nasce por força das circunstâncias e
não por sua volição.
[24] O homem não se irrita a seu contento, pensando, "Vou me irritar", e tão pouco a
raiva nasce após ter resolvido nascer.
[25] Todas as faltas e todos os atos prejudiciais produzem-se pela força de causas, de
modo algum são espontâneas.
[26] A conjunção de causas não pensa que vai engendrar e o efeito não pensa que é
engendrado.
[27] Esse princípio que postulam com o nome de "matéria primitiva" [Prakriti] ou
imaginam como um "eu" [Atman] não nasce depois de pensar, "Vou nascer".
[Aqui encontramos uma refutação às escolas Samkhya e Naiyayika. Na teoria Samkhya, há a convicção de
uma espécie de "matéria primitiva" ou Prakriti, o substrato de tudo, do qual surge todo o mundo dos
fenômenos; é como se fosse a essência que cria todo o mundo fenomenal, uma substância independente,
eterna e absoluta. A escola Naiyayika sustenta que o "eu" ou "ego" também possui esse tipo de posição
independente, absoluta e eterna. Entretanto, segundo o buddhismo, não há coisas e eventos que surjam
por sua própria opção; nenhum tem uma situação independente.]
[28] Como poderia desejar nascer, se antes de nascer não existia? Se este "eu" eterno
está em contato com um objeto, como poderia deixar de o estar?
[Se uma entidade permanente está em contacto com um outro objeto, esse contato não pode cessar sem
que ela perca o seu caráter permanente. Logo, a "entidade em contato" e a "entidade que já não está
mais em contato" não são idênticas, há uma mudança. Este raciocínio é utilizado para demonstrar que
não podem existir entidades permanentes.]
[29-30] Se o "eu" é eterno, inconsciente e infinito como o espaço, é evidentemente
inativo. Por que motivo, ainda que em contato com outras causas, o que é imóvel se
poria a agir? Se permanece imutável quando é sujeito à ação, que diferença provoca a
ação? Se se diz que há ação, qual a relação entre ela e esse Atman?
[Se a substância ou ego primordial é permanente e eterno, não pode interagir com o mundo fenomenal;
se é permanente, inalterado e eterno, não pode produzir qualquer coisa.]
[31] Assim, tudo depende de uma causa e a própria causa é também dependente.
Contra autômatos semelhantes a criações mágicas, irritamo-nos para quê?
[32] "Mas", diriam, "a resistência à raiva também não é possível; quem resistiria e a
quê?" Mas não, é claro que é possível! Uma vez que há encadeamento de causas, há a
possibilidade de abolir a dor.
[33] Por isso, quando vemos um amigo ou um inimigo seguir uma conduta repreensível,
devemos pensar, "São os seus antecedentes que agem", e guardar a serenidade.
[34] Se bastasse a todos os homens desejar para conseguir, ninguém sofreria, pois
ninguém deseja o sofrimento.
[35] Por imprudência, os homens ferem-se nos espinhos; por avidez, por desejo de
mulheres, os homens chegam mesmo a passar fome.
[36] Há também os que se inflingem todo o tipo de torturas: enforcam-se, atiram-se a
um precipício, envenenam-se ou intoxicam-se, cometendo assim graves faltas.
[37] Ora, se sob a influência das paixões chegam a destruir o próprio corpo, que lhes é
tão caro, como poderiam poupar o dos outros?
[38] Porque será que em vez de sentirmos pena destes homens transformados pelas
emoções negativas e apostados em se destruírem, sentimos raiva?
[39] Se a natureza destes insensatos consiste em fazer mal aos outros, é tão ilógico
irritar-se com eles como com o fogo, cuja natureza é queimar.
[40] Se, pelo contrário, este desejo é adventício, se os homens são naturalmente bons, a
raiva é tão pouco justificada como seria contra o ar quando este está
momentaneamente invadido por uma fumaça acre.
[41] Não nos irritamos com o pau, autor imediato das pancadas, mas com quem o
maneja; ora, como este homem é manipulado pela raiva, é a raiva que é preciso odiar!
[42] Também eu outrora infligi aos seres tamanho sofrimento, por isso, eu, que
atormentei os outros, apenas recebo o que me é devido.
[43] A espada dele e o meu corpo, é esta a dupla causa do meu sofrer: ele pegou na
espada e eu no corpo. Contra quem me indignar?
[44] Isto que eu arranjei é um abscesso em forma de corpo, um abscesso que sofre ao
menor contato. Encandeado pelas emoções negativas, sou eu que estou apegado a ele:
contra quem hei de me irritar pela dor que sinto?
[45] Devo ser louco: não gosto da dor, mas gosto do que causa a dor. É das minhas
faltas que a dor surge; porque hei de querer mal a alguém?
[46] Até a floresta de folhas em lâmina e os guardiões do inferno foram engendrados
pelos meus atos, assim como a presente dor. Contra quem me hei de irritar?
[47] São os meus atos que empurram os meus perseguidores e é por minha causa que
eles irão para o inferno. Quem é, afinal, o carrasco?
[48] Graças a eles, os meus numerosos crimes atenuam-se pelo exercício da paciência;
por minha causa, eles irão para os infernos dos longos sofrimentos
[49] Sou eu o perseguidor e são eles os benfeitores. Como ousas irritar-te, invertendo os
papéis, minha mente celerada!
[50] Eu, graças ao mérito da minha atitude positiva, não caio nos infernos. Mas eles, que
ganham com isso?
[51] Se lhes devolvesse o mal que me fazem, tão pouco seriam salvos por isso; além
disso, a minha prática espiritual seria corrompida e a minha ascese quebrada.
[52] A mente imaterial de modo algum pode ser atingida; se ela é tocada pela dor física
é por causa do seu apego ao corpo.
[53] Injúrias, palavras brutais e calúnias não magoam o corpo. Donde vem a tua raiva,
oh minha mente?
[54] Não é a antipatia dos outros que me devorará nesta vida ou numa outra; porquê
receá-la?
[55] Por que põe em causa os meus proveitos? De qualquer modo, no fim desta vida
eles vão por água abaixo, mas as minhas faltas, essas permanecerão com toda a força.
[56] Mais vale morrer hoje que arrastar-me incorretamente pela vida fora. De qualquer
modo, mesmo que viva muito tempo, a dor da morte será idêntica.
[57-58] Uma pessoa está dormindo e sonha com uma felicidade de cem anos. Outra
sonha com a felicidade de um instante. Não é verdade que, quando os dois acordarem,
quer a felicidade de um, quer a do outro, se esvaiu? É igual no momento da morte, para
o que viveu muito tempo e para o que viveu pouco tempo.
[59] Depois de grandes lucros e de deliciosos deleites, partirei nu, com as mãos vazias,
como um homem despojado pelos ladrões.
[60] "Mas", podes dizer, "graças aos meus proveitos vou vivendo e vivendo vou
esgotando os meus atos negativos e ganhando mérito." Quando nos zangamos por
uma questão de lucro, é o mérito que gastamos e o mal que ganhamos.
[61] Se a finalidade da minha vida desaparece, para que serve viver? Para acumular o
mal?
[62] Dizes que odeias o teu difamador porque ele é a causa de perdição dos que incita
contra ti. Então porque não te irritas da mesma maneira com os que caluniam os
outros?
[63] Perdoas ao maldizente quando vês que ele é influenciado por outros. Porque não
perdoas a quem te critica se ele está sob a influência das emoções negativas?
[64] Os que destroem e profanam as estátuas, os stupas e a doutrina não merecem ser
odiados, pois os Buddhas e os santos não sofrem com isso.
[65] Se alguém maltratar os nossos mestres ou os nossos pais, aqueles que amamos,
refreemos a raiva, consideremos que está aí patente o efeito de causas.
[66] O sofrimento dos seres é necessariamente a obra de uma causa animada ou
inanimada, não há razão para nos revoltarmos só contra os seres animados. Suporta
pacientemente todo o sofrimento, oh minha mente!
[67] Entre os seres que andam perdidos, uns ofendem, outros irritam-se; entre eles,
quais julgaríamos inocentes ou culpados?
[68] Porque fizeste outrora o que agora te obriga a ser tão molestado pelos teus
inimigos? Somos todos escravos dos nossos atos, não há razão para querer mal aos
outros.
[69] Se o compreendo bem, devo esforçar-me pelo mérito espiritual, para que todos
sejam animados de bons sentimentos uns pelos outros.
[70-71] Quando uma casa está ardendo, corremos à casa vizinha e retiramos a palha e
as outras matérias inflamáveis onde o fogo possa pegar; da mesma maneira, todo o
apego que possa atiçar o fogo da raiva deve ser logo eliminado, com medo que a nossa
acumulação de méritos seja consumida.
[72] Se um condenado à morte é posto em liberdade depois de lhe terem cortado a
mão, será que tem razão de queixa? Se, pelo preço dos sofrimentos humanos
escaparmos aos infernos, será que nos podemos queixar?
[73] Se hoje, uma míngua de sofrimento te parece intolerável, como não refreias a raiva
que te vai custar os suplícios do inferno?
[74] Por causa das emoções negativas fui milhares de vezes projetado nos infernos, sem
qualquer proveito para mim ou para os outros.
[75] Ora, a dor presente é bem menor e é a fonte de um grande proveito. Devemos
regozijar-nos com uma dor que suprime a dor do mundo.
[76] Há homens que se deleitam louvando as virtudes dos outros. Porque não hás de tu,
oh minha mente, sentir nisso um grande prazer?
[77] É um prazer irrepreensível, um deleite permitido pelos santos; é a melhor maneira
de conquistar o próximo.
[78] É um prazer que não aprecias? Então devias sentir a mesma aversão pelos salários e
pelas esmolas... mas assim darias cabo desta vida e das próximas.
[79] Fazem o teu elogio; admites sentir prazer. Fazem o elogio de um outro e tu não
queres participar nesse prazer.
[80] Suscitaste em ti a Bodhichitta pela aspiração de tornar todos os seres felizes. Como
te podes indignar com os que se encontram espontaneamente felizes?
[81] Dizes que desejas aos seres o estado búddhico, venerável nos três mundos, mas na
presença de honrarias vãs ficas a arder de inveja!
[Os três mundos são o mundo do desejo (kamadhatu), o mundo da forma (rupadhatu) e o mundo da
ausência de forma (arupadhatu).]
[82] És responsável por esta família, deves cuidar do seu sustento; mas se ela se basta às
suas necessidades, em lugar de te regozijares, irritas-te!
[83] O que não há de desejar aos seres quem lhes deseja iluminação! De onde poderá
vir a Bodhichitta a quem fica invejoso com a prosperidade dos outros?
[84] Se um outro não recebesse esta esmola, ela ficaria na casa do benfeitor; em todo o
caso, não seria para ti. Que importa que lhe dêem ou não?
[85] Por que hás de te afastar dos méritos, da fé, e das qualidades espirituais? Por que
não te revoltas com a falta de méritos que te impede de receber esta esmola?
[86] Não só não lamentas o mal que fizeste, como ainda tentas rivalizar com os que
fazem o bem!
[87-88] Se uma desgraça acontece ao teu inimigo, por que te regozijas? Por muito
negativos que os teus pensamentos sejam, não lhe podem causar qualquer dano e,
mesmo que esta desgraça tivesse sido realizada por tua vontade, de que modo poderia
ela dar-te felicidade? Se dizes "Como fiquei contente!", não há melhor maneira de
provocares a tua ruína.
[89] É um terrível engodo que as emoções negativas, como pescadores, lançam para te
apanharem e venderem aos demônios infernais, que te irão cozer nos seus caldeirões.
[90] Os elogios, as honrarias e a glória nada adiantam ao teu mérito e tampouco à
duração da vida, à força, à saúde e ao bem-estar físico.
[91] Que poderá ver nisso um homem conhecedor dos interesses? Agora, se o que
busca é o prazer dos sentidos, mais vale dedicar-se à bebida, ao jogo e a tudo isso...
[92] E à glória! O que não se sacrifica à glória! Até os bens e mesmo a vida. Será que as
palavras se comem? Será depois de morto que se pode saborear esse prazer?
[93] A minha mente parece uma criança gritando de desespero quando a onda leva o
seu castelinho de areia, assim que a minha reputação e glória se arruínam.
[94] O louvor é um som vazio de pensamentos, pelo que não podes dizer que te elogia!
É alguém que está contente contigo, dizes que é o seu contentamento que te faz feliz?
[95] Que esse alguém esteja contente comigo ou com quem quer que seja, que tenho
eu a ver com essa satisfação? É ele que sente esse prazer, não é nada que eu sinta!
[96] Se me proclamo feliz com o seu contentamento, então deveria ficá-lo em todos os
casos. Por que será que a alegria que ele encontra na sua afeição a um outro não me faz
sentir qualquer prazer?
[97] Não, a alegria nasce em mim porque é a mim que louvam, e esta conduta é tão
incoerente como a de uma criança.
[98] Os elogios arruínam ao mesmo tempo a paz de mente e a renúncia ao mundo,
provocam a inveja pelos homens de mérito e devastam as qualidades que se tem.
[99] Por isso, os que se levantam para destruir a minha reputação têm por única função
preservar-me dos lugares de tormento.
[100] Os bens e as honras são uma corrente que não convém à minha aspiração à
liberação: como poderia odiar aqueles que me libertam dessa corrente?
[101] Ia entrar no domínio da dor e eles são como uma porta fechada, posta à minha
frente pelas bênçãos dos Buddhas; como lhes poderia querer mal?
[102] "Mas o meu inimigo estorva as minhas boas obras!" Má desculpa para o
ressentimento, pois não há ascese comparável à paciência e a ocasião de a praticar é
oferta sua.
[103] Se não pratico a paciência com ele, é falta minha; sou eu que coloco um obstáculo
face à boa obra que me é posta à disposição.
[104] Com efeito, aquele sem o qual um outro não existe e pelo qual este último existe,
esse é a causa do outro; como lhe podemos chamar de obstáculo?
[105] O mendigo que se apresenta no momento oportuno não é um obstáculo à esmola
e o religioso que dá a ordenação não é um obstáculo à tomada de votos.
[106] Os mendigos são coisa comum no mundo, mas os ofensores são raros, pois eu
não ofendo ninguém, ninguém me ofenderá.
[107] Um inimigo adquirido sem esforço é um tesouro que me surgiu em casa; muito
caro me deve ser este auxiliar da minha carreira espiritual.
[108] Os dois têm direito ao fruto da paciência, mas que seja ele a recebê-lo primeiro,
uma vez que ele é a causa primeira da minha paciência.
[109] "O meu inimigo não tem a intenção de aperfeiçoar a minha paciência, por isso não
merece que o honre!" Mas então porque honrar o Dharma, que é uma causa inanimada
do teu aperfeiçoamento?
[110] "Mas ele tem em idéia fazer-me mal. Como posso honrar um inimigo?" Mas como
poderias praticar a paciência se ele se devotasse ao teu bem, como um médico
dedicado?
[111] É a sua hostilidade que condiciona a minha paciência e, sendo sua causa, devo
honrá-lo como ao santo Dharma.
[112] O mestre disse: "Assim como os Buddhas, os seres são um campo de mérito",
porque honrando tanto uns como outros, muitos foram os que atingiram a outra
margem da perfeição.
[113] É através dos seres, assim como dos Buddhas, que obtemos as virtudes de um
Buddha; no entanto, a veneração que devotamos aos Buddhas recusamo-la aos seres.
Por que esta distinção?
[114] A grandeza de uma intenção não se mede pela intenção em si, mas pelo seu
efeito. Portanto, os seres têm uma grandeza igual à dos Buddhas, vão a par com eles.
[115] A veneração que se tem por um homem bom dá-nos a grandeza desse homem. O
mérito que produz a devoção aos Buddhas, dá-nos a grandeza dos Buddhas.
[116] Por essa razão, os seres são semelhantes aos Buddhas, ambos permitem atingir o
estado búddhico; mas, na verdade, nenhum ser é comparável aos Buddhas, que são
oceanos de qualidades infinitas.
[117] Os Buddhas concentram em si a essência de todas as qualidades. Bastaria que um
simples átomo dessa essência se encontrasse nos seres, para que os três mundos
inteiros não lhes fizessem suficiente homenagem.
[118. Ora, esta insigne parcela que faz germinar em nós as virtudes de um Buddha, está
presente em todos os seres. É por causa desta presença que os seres devem ser
reverenciados.
[119] Aliás, para além de agradar aos seres, que outra maneira temos para saldar a
imensa dívida para com estes amigos sinceros e benfeitores incomparáveis que são os
Buddhas?
[120] Pelos seres, eles dilaceraram o corpo e desceram aos infernos; o que fazemos
pelos seres, é por gratidão pelos Buddhas que o fazemos. Por isso, devemos fazer o
bem a todos, mesmo aos nossos piores inimigos.
[121] Então, os meus mestres dedicam-se às suas crianças sem reserva e eu, em vez de
mostrar uma humildade de servo perante os filhos dos meus mestres, trato-os com
orgulho. Como é possível?
[122] Os Buddhas satisfazem-se com a felicidade dos seres; quando os seres sofrem, os
Buddhas entristecem-se. Quando satisfazemos os seres, satisfazemos os Buddhas;
quando os ofendemos, ofendemos os Buddhas .
[123] Ninguém com o corpo envolto em chamas é capaz de sentir qualquer forma de
prazer. Também os compassivos, na presença do sofrimento dos seres, são incapazes de
experimentar alegria.
[124] Ao afligir os seres afligi todos os grandes misericordiosos. Hoje mesmo confesso
esta falta, para que os Buddhas assim atingidos me perdoem.
[125] A partir de hoje, de mente e coração, tornar-me-ei um servidor do mundo para
agradar aos Buddhas. Que a multidão dos seres me arraste a cabeça sob os pés e me
mate, mas que o protetor dos seres esteja satisfeito!
[126] Os compassivos adotaram todos os seres como o seu eu, isto não oferece
qualquer dúvida! Por esta razão, são os próprios protetores que aparecem com a forma
dos seres; como ousamos faltar-lhes ao respeito?
[127] Servir os seres é servir os Buddhas, é realizar a minha finalidade, é eliminar a dor
do mundo: tal é o voto ao qual me obrigo.
[128-130] Quando sozinho um guarda real brutaliza toda uma multidão, quem for
sensato não lhe resiste, mesmo sendo capaz, porque ele não está realmente isolado; a
sua força é a força do rei. Um adversário, mesmo de aparência débil, não deve ser
subestimado, porque a sua força são os guardiões do inferno e os compassivos. Assim
como um súbdito serve um rei irascível, assim devemos servir todos os seres.
[131-132] Será que a raiva de um rei tem castigos comparáveis aos suplícios dos
infernos, para onde nos leva maltratar os seres? Será que o favor de um rei tem
recompensas comparáveis ao estado búddhico, que nos valerá o contentamento dos
seres?
[133] Já sem falar da condição futura de Buddha, não vês que nesta vida a felicidade, a
glória e o renome resultam do serviço dos seres?
[134] Não vês que, mesmo no ciclo das existências, a paciência dá-nos acesso a todos
os bens, sejam eles o encanto, a saúde e as honrarias, a longevidade e até os prazeres imensos de um chakravartin?
[Chakravartin é um monarca universal.]
[Adaptado de O Caminho para a Iluminação — Bodhicaryavatara. Coleção Espiritualidades, série Budismo,
sob a direção do Ogyen Kunzang Chöling. Escrito por Shantideva, tradução para o português por Filipe Valente Rocha e outros praticantes da escola do Budismo tibetano Ogyen Kunzang Chöling. Lisboa: Livros e Leituras, 1998. Pág. 75-91. O texto foi gentilmente transcrito por Sherab Chötso. Algumas notas foram adaptadas de A Arte de Lidar coma Raiva: O Poder da Paciência, Dalai Lama, tradução de A. B. Pinheiro de Lemos, a partir da tradução para o inglês do Geshe Thubten Jinpa. Rio de Janeiro: Campus, 2001. Pág. 84-85.]
Sem comentários:
Enviar um comentário