Do puro ao impuro
O Dharma é um processo que permite
passar do estado do ser comum ao estado do ser desperto, que se chama Buddha. Não
se poderá captar o alcance do Dharma e sua função profunda caso não se
compreenda esse processo, cujos princípios são expressos em termos de purificação:
base da purificação, objecto da purificação, agente purificador, resultado da
purificação.
A base da purificação
Nossa própria mente, na sua
verdadeira natureza, é a mente em si, semelhante ao modo de ser da mente de
todos os seres. Sendo assim, não está maculada por impurezas. Entretanto,
encontra-se agora impregnada de numerosos condicionamentos passageiros que,
embora não afectem a sua essência, produzem a ilusão e o sofrimento.
A essência da mente é o que se
chama de "coração do despertar". Apesar de ser pura, pela nossa ausência
de realização do que ela é, coração do despertar e impurezas ilusórias
encontram-se misturadas. Essa mistura constitui a base da purificação,
semelhante a um tecido branco maculado por manchas. O tecido pode voltar a ser
branco graças ao fato de a brancura ser a sua natureza. Da mesma forma, a
pureza é a natureza de nossa mente e nós podemos recobrá-la. Um carvão, ao
contrário, não tem qualquer chance de se tornar branco, pois é originalmente
negro. Se a ilusão, a dualidade e o sofrimento fossem a natureza de nossa
mente, não teríamos qualquer possibilidade de nos livrarmos delas.
O objecto da purificação
O objecto da purificação é o que
se deve eliminar, ou seja, as impurezas ilusórias, semelhantes as manchas que
recobrem o tecido, mas que não fazem parte da sua natureza. Essas impurezas não
tem realidade própria, motivo pelo qual podemos nos desembaraçar delas. Se
fossem dotadas de uma existência em si, isso seria impossível; mas, são
contingentes, de natureza ilusória, um simples erro. A sua raiz é a dualidade
"apreendido-apreendendo": no exterior, as aparências apreendidas como
objecto; no interior, a mente aprendendo enquanto sujeito. Esta polaridade
acarreta a produção de emoções conflituosas (cólera, aversão, desejo,
apego, cegueira, ciúme, possessividade, orgulho, etc) e de aparências ilusórias,
das quais provem, por sua vez, o karma e o sofrimento. E portanto a dualidade, a
base sobre a qual se edifica o processo, que deve ser principalmente eliminada.
Os objectos apreendidos exteriormente
revestem-se de seis aspectos, correspondentes aos seis sentidos: as formas para
a vista, os sons para o ouvido, os contactos para o tacto, os objectos mentais para
o mental.
O sujeito que os apreende
interiormente divide-se igualmente em seis consciências: visual, auditiva, olfactiva, gustativa,
táctil, mental. É dessa maneira que o espírito funciona
na ilusão: seis objectos e seis consciências apreendidas como realidades
separadas; esta separação é o espaço no qual se inscreve o jogo das emoções
conflituosas.
Esses seis objectos
e essas seis
consciências são, no entanto, desprovidas de uma entidade própria. No
processo de percepção de uma forma, por exemplo, incorremos em erro ao
perceber como duas entidades independentes o objecto percebido e a mente que
percebe. Na realidade, a forma, percebida como objecto, nada mais é do que a
manifestação do aspecto "claridade" da mente, enquanto que o
eu-sujeito nada mais é do que o aspecto "vacuidade" dessa mente. No
mecanismo de ilusão chega-se, contudo, à situação de olhar-se como sendo
outro. É um pouco como o que ocorre quando caminhamos ao sol: nossa sombra
destaca-se de nós e aparece como outro.
O objecto apreendido exteriormente e
o sujeito que o apreende interiormente não estão, na verdade, jamais
separados: não há dualidade. Embora o sujeito e o objecto não sejam duas
coisas distintas, como não percebemos esse fato, criamos uma dualidade connosco,
o que produz um jogo de emoções conflituosas e pensamentos ilusórios. Assim,
o que devemos purificar é essa polaridade de eu-outro.
O agente purificador
Para lavar um tecido das manchas que
o recobrem é necessário utilizar diferentes produtos: água, detergente ou sabão.
Da mesma maneira, para que se opere a purificação de nossa mente, um agente é
necessário: o Dharma. Todas as suas etapas, todos os aspectos que o compõem,
todas as meditações que nele são ensinadas participam desta única função
purificadora. Quer sejam a tomada de refúgio, as práticas preliminares, a
pacificação mental (shine) e a visão superior (lhaktong), as
fases de criação e de realização nas meditações do Vajrayana, enfim o
Mahamudra, tudo visa ao mesmo objectivo.
Pelo Dharma são inicialmente
dissipadas as emoções conflituosas e os pensamentos ilusórios mais evidentes.
Depois, progressivamente, os seus aspectos mais subtis, até, finalmente, a
eliminação do ultimo obscurecimento, o véu que recobre o conhecimento, graças
a última meditação, a que conduz ao despertar final: a "contemplação
semelhante ao vajra".
Resultado da purificação
Quando a mente esta totalmente
purificada da dualidade sujeito-objecto, revela-se o fruto: a realização da
verdade não-dual do modo de ser da mente, cuja natureza não é diferente dos
três corpos do despertar, corpo absoluto (dharmakaya), corpo de gloria (sambhogakaya)
e corpo da emanação (nirmanakaya). Esses três corpos já estavam
presentes na base de purificação, mas em estado latente. No nível do
resultado, eles são actualizados, revelados em sua plenitude e em sua pureza.
Do ponto de vista do despertar, de
fato não ha separação, nenhuma noção de produção, de diferenciação ou
de classificação. De um ponto de vista relativo, distinguem-se as três
modalidades aparentes que são os três corpos:
-
O dharmakaya corresponde ao aspecto vacuidade da mente desperta e é, portanto, desprovido de forma, cores, etc. É também o corpo que se diz obtido para beneficio próprio. Pelo poder da compaixão e dos desejos dos Buddhas e ao mesmo tempo pelo mérito dos seres, do dharmakaya se manifestam os dois corpos formais.
-
O sambhogakaya aparece para os seres de karma muito puro, em campos de manifestação diferentes do nosso. A transmissão do Dharma, nesse nível, não se faz por ensinamentos que necessitam da palavra e da escuta. O sambhogakaya simplesmente manifesta-se e os bodhisattvas que compõem o seu grupo de discípulos compreendem o sentido de tudo que deve ser transmitido.
-
O nirmanakaya é a manifestação do despertar nos domínios da manifestação ordinária, para guiar os seres de karma impuro. É o caso, por exemplo, do Buddha Shakyamuni, que vem à terra, gira a roda do Dharma e, por isso, faz com que os seres ingressem no caminho da liberação. Enquanto os dois corpos formais realizam o bem dos seres, a mente de Buddha não produz esforço, não engendra intenção, nem experimenta dificuldade. É uma actividade totalmente espontânea, semelhante a irradiação do sol, que resulta dos desejos, da motivação e dos méritos anteriores.
Embora os aspectos dos três corpos
difiram, a sua essência é una. O que são três aspectos numa só essência,
podemos compreender por um exemplo. A lua no céu é semelhante ao dharmakaya,
seus raios semelhantes ao sambhogakaya, e seu reflexo na água semelhante ao
nirmanakaya. A lua, os raios e o reflexo, ainda que pareçam diferentes, são
uma única e mesma essência.
Assim, a base de purificação é a
nossa mente de ser ordinário impuro, mas dotado das potencialidades de
despertar. O objecto da purificação são as impurezas contingentes nascidas da
polaridade sujeito-objecto. O agente de purificação é o Dharma. O resultado da
purificação é a realização do modo de ser não dual, a actualização do
despertar.
(Bokar Rinpoche. Tchenrezi:
O Senhor da Grande Compaixão. Traduzido por Murillo Nunes de Azevedo;
revisão técnica de Antonio Carlos da R. Xavier. Brasília: ShiSil, 1996. Pág. 39-44.)
revisão técnica de Antonio Carlos da R. Xavier. Brasília: ShiSil, 1996. Pág. 39-44.)
Porquê meditar
Os homens são afligidos por
sofrimentos, angústias e medos inumeráveis que são incapazes de evitar. A
meditação tem por função eliminar esses sofrimentos e essas angústias.
Pensamos, geralmente, que felicidade e sofrimento surgem de circunstâncias
exteriores. Sempre atarefados, de uma ou de outra maneira, a reorganizar o
mundo, tentamos afastar um pouco de sofrimento aqui, acrescentar um pouco de
felicidade ali, sem jamais alcançar o resultado desejado. O ponto de vista
budista, que também é o ponto de vista da meditação, considera, ao contrário,
que felicidades e sofrimentos não dependem fundamentalmente das circunstâncias
exteriores, mas da própria mente. Uma atitude de mente positiva engendra a
felicidade, uma atitude negativa produz o sofrimento. Como compreender esse
engano que nos faz procurar fora aquilo que podemos encontrar dentro? Uma pessoa
de rosto limpo e nítido ao se olhar em um espelho vê um rosto limpo e nítido.
Aquele cujo rosto é sujo e maculado de lama vê no espelho um rosto sujo e
maculado. Em verdade, o reflexo não tem existência; só o rosto existe.
Esquecendo o rosto, tomamos seu reflexo por real. A natureza positiva ou
negativa de nossa mente se reflecte nas aparências exteriores que nossa própria
mente nos envia. A manifestação exterior é uma resposta à qualidade de nosso
mundo interior.
A felicidade que desejamos não virá
da restruturação do mundo que nos cerca, mas da reforma de nosso mundo
interior. O indesejável sofrimento só cessará na medida em que não
embotarmos nossa mente com todos os tipos de negatividades. Enquanto não
reconhecermos que felicidades e sofrimentos têm sua origem em nossa própria
mente, enquanto não soubermos distinguir o que, por nossa mente, é proveitoso
ou nocivo, e que a deixamos à sua insalubridade ordinária, permanecemos
impotentes para estabelecer um estado de felicidade autêntica, impotentes para
evitar as contínuas ressurgências do sofrimento. Qualquer que seja nossa
esperança, ela é sempre decepcionada.
Se, ao descobrirmos no espelho a
sujidade de nosso rosto, decidíssemos lavar o espelho, mesmo que esfregássemos
fortemente durante anos com sabão e água em abundância, nada aconteceria, nem
a mínima sujeira, nem a mínima mancha desapareceria do reflexo. Por falta de
orientarmos nossos esforços para o objecto justo, eles permanecem perfeitamente
vãos. Eis por que o budismo e a meditação têm por primordial compreender que
felicidades e sofrimentos não dependem fundamentalmente do mundo exterior, mas
de nossa própria mente. Na falta dessa compreensão, nunca nos voltaríamos
para o interior e continuaríamos a investir nossa energia e nossas esperanças
numa vã busca exterior. Uma vez adquirida essa compreensão, podemos lavar
nosso rosto: o reflexo surgirá limpo no espelho.
As condições auxiliares
A meditação concerne à mente. No
entanto, para meditar, é preciso reunir um certo número de condições
auxiliares sem as quais nossa empreitada não seria frutuosa. Em primeiro lugar,
após ter compreendido que felicidades e sofrimentos dependem essencialmente de
nossa mente, é preciso estar penetrado de uma viva aspiração a meditar ao
mesmo tempo que experimentar alegria por essa perspectiva. Em segundo lugar, é
indispensável ser guiado por um instrutor que nos ensine com meditar. Se nós
nos propomos a visitar um certo lugar num país para nós desconhecido sem a
ajuda de alguém que tenha familiaridade com ele, nos será impossível atingir
nosso destino. Entregues à aventura, nós nos desgarraríamos ou nos perderíamos
em longuíssimos desvios. Sem mestre para guiar nossa meditação, nós nos
desgarraríamos em caminhos tortuosos. Em terceiro lugar, o local onde meditamos
reveste uma certa importância, em particular para os principiantes. As circunstâncias
nas quais vivemos exercem actualmente sobre nós uma influência muito opressora
e acarretam um abundante fluxo de pensamentos que paralisa nossas tentativas de
meditação. É necessário, portanto, retirar-se para um local ao menos
relativamente afastado das actividades mundanas. Um animal selvagem que vive nas
florestas de alta montanha não suportaria de modo algum a agitação da cidade.
Nossa mente de meditação também não pode se desenvolver em condições em
que reinam como soberanos as distracções e as solicitações exteriores
permanentes.
Como meditar
Estabelecidos em um local isolado,
é- nos necessário libertar nosso corpo de toda actividade, libertar nossa mente
dos pensamentos concernentes ao passado e ao futuro, libertar nossa palavra de
toda conversação profana. Nosso corpo, nossa palavra e nossa mente são
deixados em repouso, naturalmente à vontade.
A postura corporal é importante.
Nosso corpo é percorrido por uma rede de canais subtis (nadis) nos quais
circulam os ventos subtis (prana). A produção dos pensamentos está
ligada à circulação desses ventos. A agitação do corpo engendra a agitação
dos canais e dos ventos, que, por sua vez, favorece as turbulências mentais.
A actividade oral, a formação dos
sons, também depende da actividade dos ventos. Falar em demasia perturba-os,
aumentando a produção de pensamento. Guardar o silêncio favorece a meditação.
Preservar a calma da palavra e o
corpo predispõe, portanto, à calma interior evitando a criação de um fluxo
de pensamentos demasiado abundante. Tal como um cavaleiro, controlando bem sua
montaria, está sentado comodamente, quando o corpo e a palavra estão
controlados, a mente está predisposta ao repouso.
Falsas ideias são às vezes
alimentadas quanto ao que é a meditação. Para alguns, meditar é passar em
revista e analisar os acontecimentos de sua vida quotidiana ocorridos nos dias,
meses e anos passados. Para outros, meditar é encarar o porvir, reflectir sobre
a conduta a manter, formar projectos a mais ou menos longo prazo. Essas duas
abordagens são evidentemente erróneas. A produção de pensamentos
concernentes ao passado ou ao futuro está por si mesma em contradição com
estabelecimento da mente na calma, mesmo quando o corpo e a palavra
permanecessem inactivos. Na medida em que o exercício não conduz à paz
interior, não é meditação.
Outras pessoas, acreditando meditar,
não vão em busca nem do passado nem do futuro. Instalam-se, isto sim, num
estado vago e impreciso, vizinho do tipo de torpor que uma grande fadiga
engendra. A mente permanece numa indeterminação obscura, estado que pode
parecer positivo na medida em que proporciona, antes de tudo, uma impressão de
repouso benfazejo; todavia, falta-lhe total lucidez e não tarda a resvalar para
o sono, a menos que não desemboque numa corrente de pensamentos descontrolados.
A verdadeira meditação evita esses
escolhos: a mente despreocupada com o passado, sem encarar o futuro, enraizado
num presente lúcido, claro e calmo. A noite só permite uma percepção muito
obscura do mar, enquanto o dia deixa ver com precisão todos os detalhes: as
cores, as ondas, a espuma, os rochedos, o fundo submarino. Nossa mente é
semelhante ao mar. O meditador deve estar plenamente consciente da situação
interior, percebida de modo tão claro quanto o mar à luz do dia. Ele deixa,
então, sua mente tranquila e as ondas acalmam-se naturalmente. É a calma
interior, tecnicamente denominada pacificação mental (em tibetano shine).
Inúmeros métodos são utilizados
para desenvolver shine. Um principiante pode, por exemplo,
visualizar uma
pequena esfera de luz branca ao nível da fronte e nela concentrar-se no
melhor
de suas capacidades. Podemos também nos concentrar no vaivém da
respiração,
ou ainda, sem tomar um objecto de concentração particular, deixar a
mente sem distracção. Podemos utilizar esses três métodos e, por aí,
aprender
progressivamente a meditar.
Por sinal, é importante abordar uma
sessão de meditação com a mente muito ampla, muito aberta, sem estar fixada
sobre a esperança que ela seja boa nem o temor que não o seja. A mente deve
estar tranquila, disponível e vasta. Esperar uma boa meditação ou temer uma
ruim são, em si mesmo, entraves dos quais precisamos estar libertos.
A meditação dá-nos, às vezes,
experiências de felicidade e paz. Satisfeitos connosco regozijamo-nos por termos
feito uma boa meditação. Às vezes, ao contrário, nossa mente permanece muito
perturbada, durante toda a sessão, por numerosos pensamentos e, tristemente,
julgamo-nos péssimos meditadores. Regozijar-se por uma boa meditação e
ligar-se a experiências agradáveis, assim como entristecer-se por um meditação
ruim são duas atitudes falsas. Meditação boa ou ruim, o importante é
simplesmente meditar.
Algumas pessoas, quando de
seus começos,
obtêm rapidamente boas experiências; estas ligam-se a estas, esperam sua
repetição constante e, quando não é o caso, decepcionadas, abandonam a
meditação. No transcurso de uma longa viagem, percorremos ora bons
caminhos,
ora ruins. Se os encantos de uma porção agradável servissem de incentivo
para
nos determos para deles usufruir continuamente, ou então, se as
dificuldades do
caminho ruim nos fizessem renunciar a avançar, nunca alcançaríamos nosso
objectivo. Caminho bom ou ruim, é mister avançar. Da mesma forma, no
caminho da
meditação é necessário perseverar sem preocupar-se com as dificuldades
nem
ligar-se aos momentos felizes.
É preferível, para os
principiantes, limitar-se a curtas sessões de dez ou quinze minutos. Mesmo que
a meditação seja boa, devemos parar. Depois, se dispusermos de tempo necessário,
faremos uma segunda sessão curta após uma pausa. Melhor é proceder por uma
sucessão de curtas sessões do que engajar-se numa longa sessão que, mesmo boa
no início, corre o risco de resvalar para a dificuldade e cansar o meditador.
Os frutos da meditação
Num primeiro momento, nossa mente não
poderá permanecer estável e em repouso por muito tempo. A perseverança e a
regularidade levam, no entanto, a desenvolver progressivamente a calma e a
estabilidade. Sentimo-nos também mais à vontade física e interiormente. Por
outro lado, o império das circunstâncias exteriores, felizes ou difíceis, actualmente
muito forte sobre nós, diminui e ficamos menos submetidos a elas. O
aprofundamento de nossa experiência da verdadeira natureza da mente tem por
efeito o fato de que o mundo exterior perde sua influência sobre nós e
torna-se incapaz de prejudicar-nos.
O fruto último da meditação é a
obtenção do Perfeito Despertar, o Estado de Buddha. Estamos, então,
totalmente libertos do ciclo das existências condicionadas assim como dos
sofrimentos que formam seu tecido, ao mesmo tempo que possuímos o poder de
ajudar efectivamente o próximo.
O caminho da meditação comporta
duas fases: a primeira, dita shine (a pacificação mental), acalmando
gradualmente nossa agitação interior; a segunda, dita lhaktong (a visão
superior), levando a desenraizar o apego egocêntrico, fundamento do ciclo das
existências. A via interior, e só ela, conduz ao Despertar; nenhuma substância,
nenhuma invenção exterior possui esse poder.
Conclusão
Engajar-se na via da meditação
implica o conhecimento de sua finalidade, os meios utilizados, e os resultados
obtidos:
-
reconhecer que a fonte de todo sofrimento e de toda felicidade é a própria mente e, por consequência, só um trabalho sobre a mente permite eliminar o primeiro e estabelecer a segunda de maneira autêntica e definitiva;
-
conhecer as condições auxiliares necessárias: o desejo de meditar, um instrutor qualificado, um local retirado;
-
saber colocar sua mente em meditação: sem seguir os pensamentos do passado ou do futuro, estabelecer no presente sua mente, aberta, calma, lúcida, e fixá-la sobre o objecto de concentração escolhido;
-
saber quais são os frutos temporários e últimos da meditação: a serenidade, a liberdade em face das circunstâncias, e, enfim, o Estado de Buddha.
O ego e os cinco venenos
Nossa mente é fundamentalmente
infinita, não é limitada pelas opressões de uma existência individualizada.
Não existe ego. Conquanto ele não exista, nós nos assimilamos a esse ego ilusório.
Ele é o centro e a pedra de toque de todas as nossas relações: tudo o que
reconforta sua existência, tudo o que lhe é favorável, torna-se objecto de apego;
tudo o que, ao contrário, ameaça sua integridade torna-se inimigo, fonte de aversão.
Por sinal, a simples presença do ego oculta a verdadeira natureza de nossa
mente e dos fenómenos, torna-nos incapazes de discriminar entre o real e o ilusório.
Somos, nesse sentido, prisioneiros da opacidade mental [ignorância]. O
ego também engendra a inveja em relação a toda pessoa considerada como
um rival possível, em qualquer domínio que seja. Enfim, o ego deseja ser
superior aos outros; é o orgulho.
Apego, aversão, opacidade mental, inveja, orgulho são os cinco venenos de base produzidos pela apreensão egocêntrica.
Eles constituem um obstáculo irrevogável à paz interior, criando sem descontinuidade inquietudes, perturbações, dificuldades, angústias e sofrimentos. Não apenas para si mesmo, mas ainda para o próximo. É evidente, por exemplo, que a cólera é sofrimento para si mesmo e para aquele a quem ela se dirige, afligido por um rosto furioso, imprecações e palavras ofensivas.
O ego e os cinco venenos levam-nos, além do mais, a realizar actos de carácter nocivo que imprimem em nossa mente um potencial kármico negativo, cuja maturação se exprimirá sob a forma de circunstâncias dolorosas.
O ego e seu séquito são nossos verdadeiros inimigos, não inimigos visíveis que as armas ou algum objecto material poderiam vencer, mas inimigos invisíveis cuja derrota só a meditação e o caminho espiritual provocam. A ciência contemporânea criou armas de extremo poder, bombas capazes de matar de uma vez centenas de milhares de pessoas. Mas nenhuma bomba pode aniquilar o ego e os cinco venenos. Neste campo, a verdadeira bomba atómica é a meditação.
Apego, aversão, opacidade mental, inveja, orgulho são os cinco venenos de base produzidos pela apreensão egocêntrica.
Eles constituem um obstáculo irrevogável à paz interior, criando sem descontinuidade inquietudes, perturbações, dificuldades, angústias e sofrimentos. Não apenas para si mesmo, mas ainda para o próximo. É evidente, por exemplo, que a cólera é sofrimento para si mesmo e para aquele a quem ela se dirige, afligido por um rosto furioso, imprecações e palavras ofensivas.
O ego e os cinco venenos levam-nos, além do mais, a realizar actos de carácter nocivo que imprimem em nossa mente um potencial kármico negativo, cuja maturação se exprimirá sob a forma de circunstâncias dolorosas.
O ego e seu séquito são nossos verdadeiros inimigos, não inimigos visíveis que as armas ou algum objecto material poderiam vencer, mas inimigos invisíveis cuja derrota só a meditação e o caminho espiritual provocam. A ciência contemporânea criou armas de extremo poder, bombas capazes de matar de uma vez centenas de milhares de pessoas. Mas nenhuma bomba pode aniquilar o ego e os cinco venenos. Neste campo, a verdadeira bomba atómica é a meditação.
A postura corporal
A postura completa compreende sete
pontos:
-
as pernas cruzadas na base adamantina [postura do lótus], o pé esquerdo sobre a coxa direita, depois o pé direito sobre a coxa esquerda;
-
a coluna vertebral erecta como uma flecha;
-
os ombros afastados, como asas de um abutre;
-
as mãos no mudra da meditação, mão direita repousada sobre a mão esquerda,
-
palmas para cima;
-
o queixo formando um ângulo recto com o pescoço;
-
o olhar fixo no vago, em oblíquo para baixo, na direcção de um ponto virtual situado quatro ou oito dedos à frente da ponta do nariz;
-
a boca e a língua relaxadas.
Longe de ser arbitrário, cada ponto
da postura tem sua razão de ser em relação ao sistema de energias subtis que
percorrem nosso corpo, estreitamente ligado à produção dos pensamentos
Posicionar a mente
Uma vez estabelecido o corpo na
postura correcta, deve-se desde logo evitar a tensão mental proveniente da fixação
sobre a ideia "eu medito". A mente permanece relaxada, ampla, límpida,
sem se desgarrar nem para as lembranças, nem para os pensamentos concernentes
ao futuro, sem se equivocar também quanto à realidade dos pensamentos
presentes. Ela permanece num estado de vigilância, sem distracção, aberta a si
mesma tal como ela se apresenta, sem tensão. O meditador não deve experimentar
a sensação de estar num desfiladeiro estreito e escuro, obstruído pela névoa,
mas, antes, no cume de uma montanha, lá onde a altitude e a limpidez do céu
permitem ver claramente todo o horizonte.
Essa maneira de posicionar a mente é essencial. Temos com frequência a tendência de abordar a meditação muito tensos, ligando-nos a uma não-distracção forçada. Sem saber, antes de tudo, relaxar nossa mente, deixá-la aberta e feliz, não é possível meditar. É uma condição obrigatória.
Essa maneira de posicionar a mente é essencial. Temos com frequência a tendência de abordar a meditação muito tensos, ligando-nos a uma não-distracção forçada. Sem saber, antes de tudo, relaxar nossa mente, deixá-la aberta e feliz, não é possível meditar. É uma condição obrigatória.
(meditação)
Exercícios de meditação
A mente uma vez calma, aplicamo-nos
à concentração sobre o objecto escolhido, em primeiro lugar no contexto da
pacificação mental (sânsc. shamatha, tib. shine). Múltiplos métodos
são possíveis. Vamos contemplar alguns deles.
Shine pode antes de tudo ser praticado utilizando um suporte, impuro ou puro.
A noção de suporte impuro refere-se a qualquer objecto de natureza ordinária que seleccionamos para nele aplicarmos nossa concentração: uma montanha, uma colina, um edifício, uma mesa, um copo ou qualquer outro objecto. Pousamos nele nossa mente relaxada e sem distracção.
Podemos, por exemplo, meditar sobre essa poltrona à nossa frente. Concentrar-se não significa aqui entregar-se a um exame discursivo, mesmo muito atento das características do objecto: sua forma, sua altura, sua superfície, os motivos do tecido que o cobre, a natureza e as nuanças desse tecido, etc. Também não se trata de projectar nossa mente como se ela viesse colocar-se no interior da poltrona. Simplesmente, nós próprios, estando a um certo local e a poltrona num outro, nossa mente pousa sobre o que ela vê, sem distracção, sem ser arrebatada por outros pensamentos, sem tensão também.
Shine pode antes de tudo ser praticado utilizando um suporte, impuro ou puro.
A noção de suporte impuro refere-se a qualquer objecto de natureza ordinária que seleccionamos para nele aplicarmos nossa concentração: uma montanha, uma colina, um edifício, uma mesa, um copo ou qualquer outro objecto. Pousamos nele nossa mente relaxada e sem distracção.
Podemos, por exemplo, meditar sobre essa poltrona à nossa frente. Concentrar-se não significa aqui entregar-se a um exame discursivo, mesmo muito atento das características do objecto: sua forma, sua altura, sua superfície, os motivos do tecido que o cobre, a natureza e as nuanças desse tecido, etc. Também não se trata de projectar nossa mente como se ela viesse colocar-se no interior da poltrona. Simplesmente, nós próprios, estando a um certo local e a poltrona num outro, nossa mente pousa sobre o que ela vê, sem distracção, sem ser arrebatada por outros pensamentos, sem tensão também.
(meditação)
Alguns dentre vocês conseguem
assim, sem dúvida, estabilizar sua mente de maneira satisfatória sobre o objecto
de concentração; outros estarão nele presentes por momentos e, às
vezes, desgarrados em outros pensamentos, essa alternância podendo até mesmo
ser muito rápida. De qualquer modo, não se trata de forçar a concentração,
mas de trabalhar nas condições tais como elas se apresentam, relaxado e aberto
à situação.
Um suporte puro, em segundo lugar, designa toda representação simbólica ou não, possuindo um carácter sagrado.
Podemos, por exemplo, visualizar no espaço à nossa frente, o corpo do Buddha, criando mentalmente uma imagem clara, luminosa, radiante, perfeitamente proporcionada, sobre a qual nós nos concentramos sem distracção.
Um suporte puro, em segundo lugar, designa toda representação simbólica ou não, possuindo um carácter sagrado.
Podemos, por exemplo, visualizar no espaço à nossa frente, o corpo do Buddha, criando mentalmente uma imagem clara, luminosa, radiante, perfeitamente proporcionada, sobre a qual nós nos concentramos sem distracção.
(meditação)
É provável que essa imagem apareça
em nossa mente ora claramente, ora de maneira confusa e fugidia; ora ela estará
mesmo totalmente ausente. Isso não tem grande importância. Tentar meditar
assim é bom em si e a repetição regular do exercício conduzirá a uma
visualização cada vez mais clara e estável. A alternância de clareza e
confusão, e inclusive a impossibilidade de visualizar, são fenómenos normais
para principiantes. A perseverança afinará progressivamente suas capacidades.
Um outro suporte puro é imaginar um pequeno globo de luz (sânsc. bindu, tib. thigle) branco ao nível da fronte, muito vivo, muito brilhante. Esse suporte é visto como puro na medida em que o consideramos aqui como simbolicamente indiferenciado do mestre espiritual.
Um outro suporte puro é imaginar um pequeno globo de luz (sânsc. bindu, tib. thigle) branco ao nível da fronte, muito vivo, muito brilhante. Esse suporte é visto como puro na medida em que o consideramos aqui como simbolicamente indiferenciado do mestre espiritual.
(meditação)
Enfim, shine pode ser
praticado sem suporte. A mente é deixada livre, relaxada, ao mesmo tempo sem distracção.
(meditação)
Vimos, assim, quatro possibilidades
de concentração:
-
sobre um suporte impuro,
-
sobre um suporte puro:
-
seja o corpo do Buddha,
-
seja um pequeno globo de luz,
-
-
sem suporte.
Algumas pessoas terão sem dúvida
descoberto uma afinidade mais particular com o primeiro tipo de exercício,
outras com o segundo, outras com o terceiro, outras com o quarto. Outras ainda não
terão preferência marcada. No primeiro caso, o melhor é prosseguir a prática
quotidiana utilizando o método de sua escolha. No segundo caso, você pode
praticar cada um alternadamente. De qualquer maneira, são a regularidade e a
perseverança que permitirão progredir no caminho da pacificação.
O tratamento dos pensamentos
Os principiantes, sem saber com exactidão
o que é a meditação, criam a expectativa de uma calma perfeita,
totalmente livre dos pensamentos. Temem sua vinda, e quando estes surgem
desolam-se por sua incapacidade de meditar. Temer os pensamentos, irritar-se ou
inquietar-se com seu aparecimento, crer que a falta de pensamentos é uma boa
coisa em si, são erros que conduzem a um estado de frustração e culpa inúteis.
A mente de um não-meditador, de um principiante e de um meditador confirmado é atravessada por pensamentos. Mas, a maneira de abordá-los varia de modo considerável de um para o outro.
Alguém que não pratica a meditação é, em sua relação com os pensamentos, semelhante a um cego, o rosto voltado para uma estrada longínqua. O cego é incapaz de ver se automóveis passam ou não na estrada. Da mesma forma, a pessoa comum, embora experimentando um sentimento vago de desconforto e mal estar interiores, não está, em absoluto, consciente da torrente de pensamentos que, no entanto, escoa sem interrupção.
Ao começarmos a meditar, descobrimos os olhos para ver, mas gostaríamos que não passasse nenhum automóvel na estrada. Vem um primeiro automóvel, nossa atenção decepciona-se. Um segundo, nova decepção. Um terceiro, irritamo-nos, etc. A esperança ingénua de uma estrada vazia é incessantemente enganada. Estamos ao mesmo tempo conscientes e infelizes com a sucessão dos veículos. Cada automóvel que passa é uma nova dificuldade. Revoltamo-nos contra um estado de coisas inevitável. Quando encaramos a meditação como um espaço desprovido de pensamentos cada pensamento que se apresenta contradiz com evidência esse esquema preconcebido; estamos em situação de fracasso quase permanente.
Quando, ao contrário, compreendemos bem em que consiste a meditação, vemos desfilar os automóveis, mas sem revolta nem recusa, sem ter decidido que a estrada deveria estar vazia. Não esperamos a ausência de veículos, assim como não nos apavoramos com sua presença. Os automóveis passam e os deixamos passar; eles não são nem nocivos, nem benéficos. Se os pensamentos elevam-se, deixamos que passem naturalmente, sem nos ligarmos a eles nem condenando-os; se eles não se elevam, não encontramos aí objecto de satisfação particular. Uma abordagem sã dos pensamentos condiciona uma boa meditação.
As pessoas que compreendem mal a meditação crêem que todos os pensamentos devem cessar. Não podemos, de fato, estabelecer-nos num estado sem pensamentos. O fruto da meditação não é a ausência de pensamentos, mas o fato de que os pensamentos cessam de ser nocivos para nós. De inimigos, os pensamentos tornam-se amigos. Uma meditação ruim vem em geral da negligência das práticas preparatórias, mas também, estas tendo sido realizadas, da má compreensão da maneira justa de colocar a mente.
As pessoas ordinárias têm a mente perpetuamente distraída, dispersa. Quando meditamos, por outro lado, o maior impedimento vem das produções mentais sobreacrescidas, dos comentários sobre si mesmo e das pré-concepções. A meditação autêntica evita tanto a distracção como os acréscimos mentais.
A mente de um não-meditador, de um principiante e de um meditador confirmado é atravessada por pensamentos. Mas, a maneira de abordá-los varia de modo considerável de um para o outro.
Alguém que não pratica a meditação é, em sua relação com os pensamentos, semelhante a um cego, o rosto voltado para uma estrada longínqua. O cego é incapaz de ver se automóveis passam ou não na estrada. Da mesma forma, a pessoa comum, embora experimentando um sentimento vago de desconforto e mal estar interiores, não está, em absoluto, consciente da torrente de pensamentos que, no entanto, escoa sem interrupção.
Ao começarmos a meditar, descobrimos os olhos para ver, mas gostaríamos que não passasse nenhum automóvel na estrada. Vem um primeiro automóvel, nossa atenção decepciona-se. Um segundo, nova decepção. Um terceiro, irritamo-nos, etc. A esperança ingénua de uma estrada vazia é incessantemente enganada. Estamos ao mesmo tempo conscientes e infelizes com a sucessão dos veículos. Cada automóvel que passa é uma nova dificuldade. Revoltamo-nos contra um estado de coisas inevitável. Quando encaramos a meditação como um espaço desprovido de pensamentos cada pensamento que se apresenta contradiz com evidência esse esquema preconcebido; estamos em situação de fracasso quase permanente.
Quando, ao contrário, compreendemos bem em que consiste a meditação, vemos desfilar os automóveis, mas sem revolta nem recusa, sem ter decidido que a estrada deveria estar vazia. Não esperamos a ausência de veículos, assim como não nos apavoramos com sua presença. Os automóveis passam e os deixamos passar; eles não são nem nocivos, nem benéficos. Se os pensamentos elevam-se, deixamos que passem naturalmente, sem nos ligarmos a eles nem condenando-os; se eles não se elevam, não encontramos aí objecto de satisfação particular. Uma abordagem sã dos pensamentos condiciona uma boa meditação.
As pessoas que compreendem mal a meditação crêem que todos os pensamentos devem cessar. Não podemos, de fato, estabelecer-nos num estado sem pensamentos. O fruto da meditação não é a ausência de pensamentos, mas o fato de que os pensamentos cessam de ser nocivos para nós. De inimigos, os pensamentos tornam-se amigos. Uma meditação ruim vem em geral da negligência das práticas preparatórias, mas também, estas tendo sido realizadas, da má compreensão da maneira justa de colocar a mente.
As pessoas ordinárias têm a mente perpetuamente distraída, dispersa. Quando meditamos, por outro lado, o maior impedimento vem das produções mentais sobreacrescidas, dos comentários sobre si mesmo e das pré-concepções. A meditação autêntica evita tanto a distracção como os acréscimos mentais.
Distinção entre shine e lhaktong
A pacificação mental acalma e
estabiliza a mente, mas a verdadeira natureza desta não é reconhecida. Não
compreendemos o que ela é, e as perguntas fundamentais permanecem sem resposta,
a não ser a título de hipótese intelectual. A visão superior (sânsc. vipashyana,
tib. lhaktong) vai mais longe: estando a mente pacificada, ela reconhece
sua própria essência, sem deixar lugar à incerteza. Ela conduz a uma experiência
directa e evidente. Visto que se trata de um grau de compreensão superior à
simples calma da mente, ela é denominada visão superior.
A pacificação mental, tanto quanto a visão superior, têm por objeto a mente. O que é visto, a mente, é idêntico, mas o modo de visão é diferente. A lua reflecte-se à noite sobre a superfície de um recipiente cheio de água. Quando o recipiente está agitado, não percebemos, contudo, a forma da lua, mas uma simples luminosidade confusa. Ao deixarmos o recipiente em repouso, a superfície da água torna-se gradualmente calma e lisa. Essa fase corresponde à pacificação mental pela qual a mente desfaz-se da agitação dos pensamentos. Uma vez a água perfeitamente calma, pode-se nela ver de maneira clara o que se reflecte e reconhecer a forma percebida pelo que ela é efectivamente. A mente tendo sido, da mesma forma, apaziguada pelo exercício da pacificação mental, a visão superior permite em seguida reconhecer sua natureza.
A pacificação mental, tanto quanto a visão superior, têm por objeto a mente. O que é visto, a mente, é idêntico, mas o modo de visão é diferente. A lua reflecte-se à noite sobre a superfície de um recipiente cheio de água. Quando o recipiente está agitado, não percebemos, contudo, a forma da lua, mas uma simples luminosidade confusa. Ao deixarmos o recipiente em repouso, a superfície da água torna-se gradualmente calma e lisa. Essa fase corresponde à pacificação mental pela qual a mente desfaz-se da agitação dos pensamentos. Uma vez a água perfeitamente calma, pode-se nela ver de maneira clara o que se reflecte e reconhecer a forma percebida pelo que ela é efectivamente. A mente tendo sido, da mesma forma, apaziguada pelo exercício da pacificação mental, a visão superior permite em seguida reconhecer sua natureza.
Prática de lhaktong
Tomemos inicialmente a postura
corporal correcta, sem tensão, depois coloquemos nossa mente num estado de shine
aberto e relaxado. Experimentamos assim uma experiência de calma mesclada
de um sentimento de felicidade. Procuremos, então, onde reside essa mente
calma. Está ela em nossa cabeça, num local determinado de nosso corpo, ou em
todo o nosso corpo? Em nosso coração? Em nosso cérebro? Qual é a essência
dessa mente calma? Onde ela reside? Examinemos isso com muita atenção.
(meditação)
Tal exame conduz-nos, pelo carácter
infrutuoso da investigação, a descobrir por experiência a não-localização
da mente calma. Onde quer que a procuremos, não a encontramos em lugar algum.
Deixemos agora o exame e retomemos shine como precedentemente.
(meditação)
A investigação não nos permitiu
descobrir a mente onde quer que fosse. Entretanto, deixando de novo nossa mente
em repouso, temos verdadeiramente o sentimento que existe uma mente em repouso;
uma sensação de felicidade, de calma, de algo que existe; um sentimento de
ser.
Quando não procedemos a um exame, experimentamos a existência dessa mente calma. Quando, em seguida, observamos a própria essência dessa calma não podemos dizer de maneira alguma: "é isso" ou "é aquilo". Somos completamente incapazes de descrever o que quer que seja por incapacidade de encontrar algo que pudéssemos denominar de mente calma. Mas, se concluíssemos que a mente calma não existe absolutamente, estaríamos em contradição com esse sentimento de ser que experimentamos ao deixar nossa mente em repouso. Somos levados à descoberta de um estado de ser indizível. Reconhecê-lo e fazer dele a experiência directamente é o que denominamos lhaktong, a visão superior.
Esse reconhecimento só é agora possível pela alternância do repouso e do exame. Quando é alcançado um certo grau de meditação, esses dois estados não são, contudo, mais dissociados e o exercício da alternância torna-se supérfluo. Chegar a essa indissociação da mente calma e da mente que investiga é a visão superior no sentido pleno do termo. Todavia, proceder por alternância já é uma primeira abordagem.
Agora, todos podemos ver a escada iluminada pela lâmpada. Vejamo-la bem, depois façamos nascer em nossa mente o pensamento da escada, isto é, sua imagem.
Quando não procedemos a um exame, experimentamos a existência dessa mente calma. Quando, em seguida, observamos a própria essência dessa calma não podemos dizer de maneira alguma: "é isso" ou "é aquilo". Somos completamente incapazes de descrever o que quer que seja por incapacidade de encontrar algo que pudéssemos denominar de mente calma. Mas, se concluíssemos que a mente calma não existe absolutamente, estaríamos em contradição com esse sentimento de ser que experimentamos ao deixar nossa mente em repouso. Somos levados à descoberta de um estado de ser indizível. Reconhecê-lo e fazer dele a experiência directamente é o que denominamos lhaktong, a visão superior.
Esse reconhecimento só é agora possível pela alternância do repouso e do exame. Quando é alcançado um certo grau de meditação, esses dois estados não são, contudo, mais dissociados e o exercício da alternância torna-se supérfluo. Chegar a essa indissociação da mente calma e da mente que investiga é a visão superior no sentido pleno do termo. Todavia, proceder por alternância já é uma primeira abordagem.
Agora, todos podemos ver a escada iluminada pela lâmpada. Vejamo-la bem, depois façamos nascer em nossa mente o pensamento da escada, isto é, sua imagem.
(meditação)
O pensamento da escada está agora
presente em nossa mente. De onde ele apareceu? De que lugar veio? Qual é sua
fonte?
(meditação)
Examinando a origem desse
pensamento, não podemos dizer que ela tenha vindo do exterior, como também não
podemos descobrir sua fonte no interior de nosso organismo físico. O pensamento
da escada não se introduziu de forma alguma em nossa mente à maneira de uma
pessoa que, proveniente do exterior, entra num cómodo. Ele está ali sem ter
vindo de lugar algum.
(meditação)
Somos impotentes para encontrar
qualquer origem que seja para esse pensamento.
Quando, agora, o pensamento da escada está presente em nossa mente, onde ele reside? Aqui? Acolá? No exterior de nosso corpo, ou no interior? Examinemos atentamente. Quando uma pessoa entra num cómodo, ela chega do exterior, ultrapassa a soleira, em seguida permanece num local limitado e definido, o cómodo. Podemos do mesmo modo identificar um local limitado e definido onde permanece o pensamento?
Quando, agora, o pensamento da escada está presente em nossa mente, onde ele reside? Aqui? Acolá? No exterior de nosso corpo, ou no interior? Examinemos atentamente. Quando uma pessoa entra num cómodo, ela chega do exterior, ultrapassa a soleira, em seguida permanece num local limitado e definido, o cómodo. Podemos do mesmo modo identificar um local limitado e definido onde permanece o pensamento?
(meditação)
Qual é a forma, não da imagem
percebida mentalmente, mas do próprio pensamento? Qual é sua forma, seu
tamanho? Podemos vê-la? Nossa investigação desemboca uma vez mais numa ausência.
Vejamos agora essas flores atentamente.
Vejamos agora essas flores atentamente.
(meditação)
O pensamento da escada continua em
sua mente enquanto ela está ocupada em observar as flores? No momento em que o
pensamento da escada cessou como ele partiu?
Quando o pensamento da escada se formou em nossa mente, nós nos perguntamos se era à maneira de uma pessoa entrando num cómodo pela porta e depois lá permanecendo. Quando o pensamento da escada cessou, suplantado pelo pensamento das flores, como partiu? Do mesmo modo que se deixa um cómodo para ir a outro lugar?
Quando o pensamento da escada se formou em nossa mente, nós nos perguntamos se era à maneira de uma pessoa entrando num cómodo pela porta e depois lá permanecendo. Quando o pensamento da escada cessou, suplantado pelo pensamento das flores, como partiu? Do mesmo modo que se deixa um cómodo para ir a outro lugar?
(meditação)
De onde veio o pensamento das
flores?
Vejamos agora essa estátua. O
pensamento das flores continua ali? Para onde ele partiu?
(meditação)
Examinando de onde vinha o
pensamento, não pudemos encontrar local de origem. Escrutando sua localização
uma vez presente, não pudemos igualmente apreendê-lo, da mesma forma que,
tendo cessado, não pudemos descobrir o lugar para onde ele teria partido.
Os pensamentos não vêm de parte alguma, não residem em parte alguma, não vão a parte alguma. Eles não têm, em si mesmos, nenhuma existência.
Os pensamentos não vêm de parte alguma, não residem em parte alguma, não vão a parte alguma. Eles não têm, em si mesmos, nenhuma existência.
O tigre de pelúcia
Quando não conhecemos a natureza da
mente, vivemos, no entanto, na convicção de que os pensamentos existem
realmente. Sendo tomados por reais, tornam-se causa de sofrimento. Vemos pessoas
a tal ponto atormentadas por um pensamento que elas deixam de comer, tornam-se
magras e pálidas, olhos cavos e sem expressão. Essas repercussões físicas
ilustram bem a força dos pensamentos tomados por reais.
Fabricam-se, para uso das crianças, animais em pelúcia, às vezes assemelhando-se muito com os verdadeiros. Os tigres, os leões, os leopardos mostram numa mandíbula aberta presas ameaçadoras, e fixam sobre sua presa olhos pavorosos. Uma criança bem pequena pode ter medo de um tigre de pelúcia, acreditando-se em presença de uma ameaça efectiva. Sua confusão é a única causa de seu sofrimento. Lá onde não há tigre, ela crê haver um. Inversamente, a mesma criancinha ficará muito feliz com um cavalo em pelúcia, concedendo-lhe uma existência real, investindo-o da gentileza e da doçura de um autêntico cavalo. Ao não reconhecermos a natureza de nossos pensamentos, somos semelhantes a essa criancinha: tomamos por real o que não é e, daí, experimentamos sofrimentos e alegrias.
O meditador que, ao contrário, realiza o mahamudra, isto é, reconhece a verdadeira natureza de sua mente, é comparável a um adulto que não se enganara com uma imitação de tigre ou cavalo. "É bem feito, pensará o adulto; dir-se-ia um tigre, dir-se-ia um cavalo." Mas ele não se equivoca quanto à realidade do objecto e não é, portanto, levado a reagir como o faria diante de um verdadeiro tigre ou de um verdadeiro cavalo. Ele está livre dos medos e das alegrias que a situação efectiva causaria. Assim também, para aquele que realizou o mahamudra, os pensamentos, cujo carácter irreal é desmascarado, não dão mais lugar a complicações emocionais: eles não engendram nem sofrimentos, nem alegrias.
Aparecem em nossa mente todos os tipos de pensamentos e imagens; mas eles não têm existência real. Lhaktong reconhece simultaneamente as manifestações mentais e sua ausência de existência real. Não se trata em absoluto de apagar a manifestação, nem renegar a faculdade criadora da mente, mas ver seu carácter desprovido de existência própria. Um falso tigre não deixa de aparecer com uma forma: é o aspecto manifestação. Saber, por outro lado, que ele não é real, corresponde ao aspecto vacuidade. A visão superior reconhece ao mesmo tempo a forma do tigre e sua irrealidade, a união da manifestação e da vacuidade.
Isso não significa em absoluto que a mente permanece desde então numa espécie de indiferença permanente, entediante e opaca. A mente experimenta, ao contrário, sua própria felicidade, sem medida comum com as alegrias ordinárias, a tal ponto que é considerada para além dos conceitos de alegria e não-alegria. A mente de um ser liberto está não apenas além do sofrimento, ela é por natureza e de maneira inalterável, paz, lucidez, inteligência, felicidade, amor e poder, infinitamente mais vivo do que o somos.
Fabricam-se, para uso das crianças, animais em pelúcia, às vezes assemelhando-se muito com os verdadeiros. Os tigres, os leões, os leopardos mostram numa mandíbula aberta presas ameaçadoras, e fixam sobre sua presa olhos pavorosos. Uma criança bem pequena pode ter medo de um tigre de pelúcia, acreditando-se em presença de uma ameaça efectiva. Sua confusão é a única causa de seu sofrimento. Lá onde não há tigre, ela crê haver um. Inversamente, a mesma criancinha ficará muito feliz com um cavalo em pelúcia, concedendo-lhe uma existência real, investindo-o da gentileza e da doçura de um autêntico cavalo. Ao não reconhecermos a natureza de nossos pensamentos, somos semelhantes a essa criancinha: tomamos por real o que não é e, daí, experimentamos sofrimentos e alegrias.
O meditador que, ao contrário, realiza o mahamudra, isto é, reconhece a verdadeira natureza de sua mente, é comparável a um adulto que não se enganara com uma imitação de tigre ou cavalo. "É bem feito, pensará o adulto; dir-se-ia um tigre, dir-se-ia um cavalo." Mas ele não se equivoca quanto à realidade do objecto e não é, portanto, levado a reagir como o faria diante de um verdadeiro tigre ou de um verdadeiro cavalo. Ele está livre dos medos e das alegrias que a situação efectiva causaria. Assim também, para aquele que realizou o mahamudra, os pensamentos, cujo carácter irreal é desmascarado, não dão mais lugar a complicações emocionais: eles não engendram nem sofrimentos, nem alegrias.
Aparecem em nossa mente todos os tipos de pensamentos e imagens; mas eles não têm existência real. Lhaktong reconhece simultaneamente as manifestações mentais e sua ausência de existência real. Não se trata em absoluto de apagar a manifestação, nem renegar a faculdade criadora da mente, mas ver seu carácter desprovido de existência própria. Um falso tigre não deixa de aparecer com uma forma: é o aspecto manifestação. Saber, por outro lado, que ele não é real, corresponde ao aspecto vacuidade. A visão superior reconhece ao mesmo tempo a forma do tigre e sua irrealidade, a união da manifestação e da vacuidade.
Isso não significa em absoluto que a mente permanece desde então numa espécie de indiferença permanente, entediante e opaca. A mente experimenta, ao contrário, sua própria felicidade, sem medida comum com as alegrias ordinárias, a tal ponto que é considerada para além dos conceitos de alegria e não-alegria. A mente de um ser liberto está não apenas além do sofrimento, ela é por natureza e de maneira inalterável, paz, lucidez, inteligência, felicidade, amor e poder, infinitamente mais vivo do que o somos.
Tomar o remédio
Existem inúmeros métodos para
praticar lhaktong, bem como existem inúmeros métodos de shine.
Consideramos aqui duas abordagens:
-
analisar a natureza da mente calma;
-
determinar de onde vêm os pensamentos, onde eles residem, aonde vão.
Compreendê-las
intelectualmente não
é suficiente. É indispensável colocá-las em prática pela meditação. Não
meditar e contentar-se em pensar que o que acaba de ser exposto é
exacto, seria
estéril. Quando estamos enfermos, o médico identifica a enfermidade,
prescreve
os medicamentos, explica os efeitos esperados. Todavia, não nos curamos
se nos
contentamos com o diagnóstico, com ter bem compreendido quais
medicamentos
tomar, como tomá-los e o que resultará disso. Ainda é preciso
efectivamente tomar o remédio prescrito para sarar. Também não basta
compreender o que é a
meditação, é preciso meditar.
Meditar alguns dias, alguns meses, até mesmo um ano, depois abandonar, também não dará frutos. Um enfermo deve tomar seus medicamentos até a cura completa. Se ele pára o tratamento, mesmo que este dure meses ou anos, o mal triunfará. Devemos prosseguir nossa meditação até que tenhamos alcançado uma realização efectiva e estável. Regularidade e perseverança são duas condições necessárias para uma meditação proveitosa.
Meditar alguns dias, alguns meses, até mesmo um ano, depois abandonar, também não dará frutos. Um enfermo deve tomar seus medicamentos até a cura completa. Se ele pára o tratamento, mesmo que este dure meses ou anos, o mal triunfará. Devemos prosseguir nossa meditação até que tenhamos alcançado uma realização efectiva e estável. Regularidade e perseverança são duas condições necessárias para uma meditação proveitosa.
(Bokar Rinpoche. Meditação:
Conselhos aos Principiantes. Traduzido por Plínio Augusto Coelho;
revisão técnica de Antonio Carlos da R. Xavier. Brasília: ShiSil, 1997
revisão técnica de Antonio Carlos da R. Xavier. Brasília: ShiSil, 1997
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