Os princípios masculino e feminino são representados pela união de uma divindade com sua consorte, como Vajradhara e Vajradhatvishvari, Vajrasattva e Vajramanani. Este símbolo, chamado yab-yum ou pai-mãe, é muito comum nas pinturas (tib. thangka / thang ka) tibetanas, mas foi mal interpretado e vulgarizado por muitos autores. Estas imagens representam a não-dualidade da mente desperta, a união indissociável dos meios hábeis (método) com a sabedoria, do grande êxtase da clara luz com a vacuidade, do relativo com o absoluto, do samsara com o nirvana. Não há qualquer relação com a delusão de desejo ou cobiça, um dos venenos da mente dualista.
As escrituras dizem que a tanto a sabedoria sem meios hábeis quando os meios hábeis sem sabedoria são um cativeiro. Portanto, não abandone nenhum um dos dois.
(Atisha, Bodhipathapradipa)
No tantra, o poder da imaginação está atrelado à meditação em uma prática chamada yoga divina. Nessa prática, você imagina [1] trocar sua mente como ela aparece normalmente, cheia de emoções problemáticas, por uma mente de pura sabedoria motivada pela compaixão; [2] substituir seu corpo como ele normalmente aparenta (composto de carne, sangue e ossos) por um corpo moldado pela sabedoria motivada pela compaixão; [3] desenvolver um senso de um eu puro que depende da aparência pura da mente e do corpo em um ambiente ideal, totalmente engajado em ajudar os outros. Como essa prática específica do Tantra necessita de uma visualização de você mesmo com o corpo, atividades, recursos e tudo mais que cerca o Buddha, ela é chamada de "usar a imaginação como o caminho espiritual". [...]
Um buddha não faz uso do intercurso sexual. As divindades que aparecem em uma mandala estão, freqüentemente, em união como uma consorte, mas isso não sugere que os buddhas dependam do intercurso para sua bem-aventurança. Os buddhas têm a bem-aventurança total dentre de si mesmos. As divindades em união aparecem espontaneamente nas mandalas para o benefício das pessoas com faculdades bastante aguçadas que podem usar uma consorte e a satisfação da união sexual para a prática do rápido caminho do tantra. De maneira muito parecida, o buddha tântrico Vajradhara aparecem em aspectos pacíficos e irados, mas isso não significada que Vajradhara tenha estes dois aspectos em sua personalidade. Vajradhara é totalmente compassivo. Sua aparição espontânea em diversas formas é para o benefícios de quem está em treinamento. Vajradhara aparece na justa forma que os treinados devem meditar quando usarem as emoções aflitivas como a luxúria e a raiva no processo do caminho.
(Dalai Lama, Como Praticar)
Muitas divindades tântricas são representadas em união com consortes, e estas formas são conhecidas como yab-yum (pai-mãe). Sua união representa a inseparabilidade de relativo e absoluto, manifestação e vacuidade, meios hábeis e sabedoria. Também simbolizam a união do que são chamadas energias "solar" e "lunar", os dois pólos de energia sutil que flui no sistema de energia sutil do corpo humano, que é chamado "mandala interior". Quando os circuitos negativo e positivo são juntados em um circuito elétrico, uma lâmpada pode ser acesa. Quando as energias solar e lugar do sistema de energia sutil de um ser humanos são levados ao estado de não-dualidade, que é sua condição inerente e latente desde o início, o ser humano pode se tornar iluminado. Do mesmo modo, no sistema filosófico taoísta chinês, yin e yang são vistos como dois princípios de energia que fundamentalmente inseparáveis e mutuamente interdependentes constituintes de uma unidade totalmente integrada; assim também, as energias solar e lunar são vistas como fundamentalmente não-duais desde o início. Sua unidade fundamental é simboliza pela sílaba sânscrita Evam, que também é um símbolo do princípio yab-yum.
(Chogyal Namkhai Norbu, The Crystal and the Way of Light)
O mesmo equívoco costuma ocorrer com as divindades "iradas" como Mahakala, (Heruka Chakra-)Samvara e Kalachakra, muitas vezes confundidas com seres demoníacos. Na verdade, elas representam a própria transmutação dos venenos da mente — eles são transformados em sabedoria não-dual. A chamada "ira vajra" nada tem a ver com a delusão da raiva, um dos venenos da mente dualista.
Há um paralelo nas lendas que envolvem a transmissão do buddhismo da Índia para o Tibet, que se acredita ter sido realizada pelo grande yogi indiano Padmasambhava, no século VIII. Naquela época, o Tibet era dominado por uma tradição xamanista. Os tibetanos eram profundamente supersticiosos e tinham medo de espíritos e forças mágicas que acreditavam estar à sua espreita do outro lado do mundo. Dizem que Padmasambhava desafiou os melhores xamãs da religião Bön local para uma competição em que provou a superioridade de seus poderes mágicos, vencendo-os em seu próprio jogo. No decorrer da competição, derrotou os poderosos demônios com cabeça animal dos reinos inferiores, convertendo-os em protetores do buddhismo e revelando-lhes que seu temperamento era um dos aspectos da mente iluminada, e não das forças demoníacas. A tradição tibetana está repleta de imagens de tais seres "dando pontapés no cadáver do ego", representando o controle das emoções dolorosas e a trajetória que parte da projeção, da paranóia, e do medo, e avança em direção a uma capacidade visual harmônica e lúcida.
(Mark Epstein, Pensamentos sem Pensador)
O tantrismo lida diretamente com nossas experiências. As divindades pacíficas, visualizadas como sedutoras e atraentes, podem ajudar a enfrentar o desejo, enquanto a visualização de divindades coléricas pode ajudar a transformar a agressão. As impurezas e delusões não precisam se abandonadas no tantra porque podemos utilizá-las no caminho. [...] Visualizar divindades iradas desperta mais emoções do que visualizar divindades pacíficas. As divindades iradas podem ser bem intimidadoras. Costuma estar adornadas com crânios, estar vestidas com peles de animais e coisas assim. Porém, tudo isso deve ser compreendido simbolicamente e é necessário compreender o que esses símbolos representam em cada prática específica.
(Traleg Kyabgon Rinpoche, The Essence of Buddhism)
Se você é uma pessoa raivosa, é muito eficaz fazer prática de visualização, usando a ira como antídoto para cortar a raiva que existe na sua mente. Nas práticas com divindades iradas, visualizamos seres irados, manifestações da sabedoria, com duas, quatro ou muitas pernas pisoteando seres negativos, soltando faíscas e brandindo armas. Aqueles que são destruídos não são seres externos, mas nossos próprios venenos, nossos verdadeiros inimigos e demônios. O apego do "eu" é encarnado por Rudra, o "dono" do samsara, que é reprimido por seres que personificam a sabedoria. Em todas essas imagens iradas, assistimos ao desenrolar de uma guerra interior: a sabedoria destrói a raiva, apego e ignorância.
(Chagdud Tulku Rinpoche, Portões da Prática Budista)
Os yidams são os diferentes aspectos dos cinco princípios búddhicos da energia, retratados como masculinos ou femininos, e poder ser irados ou pacíficos. O aspecto irado está associado à transmutação pela força, saltando para a sabedoria e transmutação sem alternativa. É o ato de romper, associado à louca sabedoria. Os yidams pacíficos estão associados à transmutação por "processo", isto é, a confusão é pacificada e gradativamente se desgasta. [...] Na prática da nossa identificação com determinado yidam, temos de desenvolver uma consciência que nos ativa de volta à nossa verdadeira natureza, partindo da nossa natureza confusa. Precisamos de choques súbitos, lembretes constantes, uma qualidade desperta. Essa percepção é representada pelas divindades protetoras que se mostram em forma irada. Uma sacudidela repentina que nos aviva a memória. É uma consciência irada porque envolve o salto. Este salto necessita de certa espécie de energia para romper a confusão. Precisamos realmente tomar a iniciativa de saltar, sem nenhuma hesitação, dos limites da confusão para a abertura. Precisamos efetivamente destruir a hesitação. Precisamos destruir todos os obstáculos que encontramos no caminho.
Por isso, a divindade se denomina protetora. "Proteção" não significa garantir a nossa segurança, mas significa um ponto de referência, uma diretriz que nos aviva a memória, que nos mantém no lugar, no aberto. Existe, por exemplo, uma divindade protetora chamada Mahakala de seus braços, que é de cor preta, e se situa sobre Ganesha, a divindade com cabeça de elefante, que aqui simboliza os pensamentos subconscientes. A tagarelice subconsciente é um aspecto da preguiça que nos desvia, automaticamente, de ser conscientes e nos convida a voltar ao fascínio dos pensamentos e emoções. Atua especialmente sobre a natureza vistoriadora de nossos pensamentos — intelectuais, corriqueiros, emocionais, sejam eles quais forem. O Mahakala leva-nos de volta à abertura. A intenção do simbolismo é mostrar que o Mahakala sobrepuja a tagarelice subconsciente, colocando-se sobre ela. O Mahakala representa o salto na consciência penetrante. [...]
Os yidams irados são sempre associados ao que se conhece em termo tântricos como a "ira vajra", a ira que tem a qualidade tathata; em outras palavras, a ira sem ódio, energia dinâmica. Essa energia, seja qual for a sabedoria a que pertence, é invencível. É completamente indestrutível, imperturbável, porque é não-criada, mas descoberta como qualidade original. Não está, portanto, sujeita ao nascimento nem à morte.
(Chögyam Trungpa Rinpoche, Além do Materialismo Espiritual)
Hoje em dia, algumas pessoas que não compreendem a natureza das divindades iradas sentem-se desconfortáveis com este conceito, mas devemos saber que elas não são, de modo algum, uma expressão de nossa confusão emocional comum, na qual, como seres não-iluminados, reagimos com apego ao que é nosso e com aversão aos outros. Ao invés disso, o vasto alcance das divindades iradas é simplesmente uma expressão do poder inato da compaixão, que de fato doma a nossa negatividade emocional.
(Lama Nubpa Chodak Gyatso, The Shi-tro Mandala for Universal Peace)
Todos as diferentes divindades tântricas são símbolos do estado desperto iluminado que aparecem a fim de beneficiar os seres sencientes. As divindades em união (yab-yum) não simbolizam o desejo; elas manifestam o estado desperto iluminado para curar o desejo. Do mesmo modo, as divindades iradas não são uma expressão de raiva ou ira, mas ao invés disso são uma expressão intensa da compaixão última que se manifestou de forma comum e ilusória a fim de domar os seres sencientes impossíveis de serem domados de outra forma. As divindades em união representam o estado desperto não-objetivo, a compaixão última. A natureza desta compaixão é a vacuidade. O princípio feminino do estado desperto iluminado é a vacuidade e o princípio masculino é a compaixão ou método. Estes dois juntos, expressos pela união das divindades, simbolizam o estado não-dual. [...]
O vajra de cinco pontas, segurado por algumas divindades, simboliza as cinco sabedorias primordiais. Um vajra de nove pontas simboliza os nove veículos. A faca-vajra curva [sânsc. kirtari, tib. drigug] simboliza a sabedoria que corta os pensamentos discursivos. Uma espada, com a espada da sabedoria de Manjushri, tem mais ou menos o mesmo significado do drigug. A copa de crânio [sânsc. e tib. kapala] é um vaso para o êxtase e para a sabedoria primordial, simbolizando o estado de ser além do círculo dos padrões de pensamento discursivo. Uma copa de crânio cheia de sangue simboliza as quatro forças negativas, ou a mente do samsara, que foi subjugada pela grandeza da sabedoria primordial. Seria um erro pensar que o sangue pertencia a um demônio morto pela divindade, que então o bebe com uma atitude vitoriosa. A divindade não tem uma atitude de desejo ou ódio. Entendido adequadamente, o sangue representa as qualidades da misericórdia e da compaixão, não o ódio e o desejo. Das duas qualidades iluminadas, o método e a sabedoria, a copa de crânio relaciona-se especificamente com a qualidade da sabedoria.
A espada da sabedoria também simboliza cortar o nascimento e a morte desde a raiz. Se você não nascer, você não morrerá. O tridente simboliza cortar os três venenos [apego, aversão e ignorância] desde a raiz. Tudo sobre a forma da divindade é significativo, até mesmo o fato de uma divindade ter muitas mãos que seguram muitos emblemas — cada um deles tem um significado interior específico.
Um rosto simboliza a forma única do dharmakaya. "Uma gota" significa que todos os aspectos estão condensados em uma única natureza, absolutamente suprema. Três cabeças (e faces) representam as três portas para a liberação e os três kayas. Duas mãos simbolizam o método da grande misericórdia e a sabedoria da vacuidade. Quatro mãos simbolizam os quatro imensuráveis — amor, compaixão, alegria e equanimidade. Seis mãos simbolizam as cinco sabedorias e a sabedoria primordial naturalmente surgida. A postura adamantina, o vajrasana [ou padmasana, postura do lótus], simboliza a igualdade do samsara e do nirvana, o estado de mente além dos dois extremos. [...]
As vestes da divindade simbolizam a liberação do sofrimento e da delusão. Uma veste superior feita de seda branca com desenhos dourados, uma veste inferior feita de várias cores e echarpes longas e flutuantes são exemplos de várias vestes que as divindades usam. O cabelo amarrado em um nó em cima da cabeça simboliza ter completado todos os dharmas virtuosos. As jóias e os ornamentos de flores simbolizam carregar a energia do desejo no caminho para a sabedoria primordial, porque a energia do desejo não é rejeitada. Os ornamentos de jóias simbolizam os sete ramos do caminho da bodhichitta. O colar longo simboliza a atenção, o primeiro ramo. A coroa simboliza a investigação das escrituras, o segundo ramo. As pulseiras simbolizam a perseverança, o terceiro ramo. Os brincos simbolizam a purificação sublime, o quarto ramo. Os braceletes simbolizam o pensamento perfeito, o quinto ramo. O colar médio simboliza a equanimidade, o sexto ramo. O rosário longo e florido simboliza a alegria, o sétimo ramo.
As características das divindades iradas são as seguintes: três olhos simbolizam o conhecimento onisciente dos três tempos — passado, presente e futuro — que podem ser vistos simultaneamente; quatro presas longas simbolizam cortar desde a raiz os quatro tipos de nascimento na existência cíclica; a disposição bruta das divindades iradas, que espelha nossa própria aparência bruta e grosseira, é compassivamente adotada para se relacionar habilmente com nossa própria disposição. [...] Continuando com o simbolismo irado, a veste superior feita de pele de elefante simboliza as dez forças que subjugam toda delusão. A veste inferior, a camisa feita de pele de tigre, simboliza a atividade corajosa que subjuga a raiva. A echarpe de seda longa e flutuante simboliza a bodhichitta que subjuga o desejo. A coroa feita de cinco crânios secos simboliza o orgulho subjugado pelas qualidades dos cinco buddhas. O rosário longo, feito de cinqüenta e uma cabeças humanas frescas, simboliza subjugar a inveja, a paranóia e as cinqüenta e uma mentes secundárias que fazem as delusões surgirem. Os seis ornamentos de ossos e os seis mudras naturais simbolizam as seis perfeições. O flamejante fogo de cinco cores da sabedoria primordial, ao redor das divindades, simboliza a sabedoria que compreende o não-eu, a sabedoria que consume os três reinos da existência cíclica.
(Gyatrul Rinpoche, Generating the Deity)
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