A meditação com divindades - parte 1



A meditação com divindades é de uma das práticas mais importantes do budismo Vajrayana pois utiliza simultaneamente os meios hábeis e a sabedoria. Os meios hábeis (sânsc. upaya) são os métodos para alcançar a iluminação e trazer benefício a todos os seres, enquanto a sabedoria (tib. prajna) é a consciência que compreende a natureza vazia dos fenômenos.

Os yidams (tib. yi dam, mente sagrada ou mente do compromisso) são as divindades meditacionais (sânsc. ishta-devata) do budismo Vajrayana. Essas "divindades" ou "deidades" não são deuses no sentido comum, mas seres iluminados (sânsc. buddha) que representam aspectos específicos da transformação interior, sendo visualizadas durante meditações conhecidas como meios de atingimento (sânsc. sadhana), yoga da divindade ou união com a divindade (sânsc. devata-yoga, tib. leneljor / lha'i rnal 'byor). Para praticar estas meditações, é fundamental receber as iniciações e ensinamentos de um professor qualificado da tradição Vajrayana.

A yoga da divindade envolve a visualização criativa de si mesmo como um Buda totalmente iluminado, visando atingir esta iluminação mais rapidamente do que nas práticas do sutra. A divindade meditacional usada nesta prática representa o próprio potencial para a iluminação; é um arquétipo para o estado que se está se tentando alcançar através da meditação. [...]

Não há diferenças fundamentais ou realmente existentes entre os seres comuns e os Budas totalmente iluminados; a única diferença é que as mentes dos seres comuns são importunadas por pensamentos iludidos que resultam de aflições mentais, mas estas aflições são casuais e não são parte da natureza da mente. Quando os seres comuns removem estas aflições e aperfeiçoam a sabedoria e a compaixão, eles se tornam Budas.

O termo "divindade" é uma tradução parcial e imprecisa de yidam, que literalmente significa "mente sagrada". No tantrismo, a "divindade" é uma manifestação da dimensão pura do próprio indivíduo, não de algo externo. A forma irada da "divindade" representa a natureza dinâmica da energia. A forma alegre [com consorte] representa a sensação de êxtase; e a forma pacífica representa o estado calmo da mente sem pensamentos.

(Chögyal Namkhai Norbu, Dzogchen)

No Tantra, o princípio das deidades é um modo de comunicação. É difícil relacionar-se com a presença de energias iluminadas se elas não têm forma ou base para a comunicação pessoal. As deidades são entendidas como metáforas, que personificam e captam as infinitas energias e qualidades da mente de sabedoria dos budas. Personificá-las na forma de deidades torna possível ao praticante reconhecê-las e se relacionar com elas. Através do treino em criar e reabsorver as deidades na prática de visualização, ele descobre que a mente que percebe a deidade, e a própria deidade, não são separadas.

No budismo tibetano, o praticante terá um yidam, isto é, a prática de um Buda ou deidade específica com quem tem uma forte ligação kármica, que é para ele uma encarnação da verdade, que invoca como a essência da sua prática. Em lugar de perceber as manifestações do dharmata [realidade pura] como fenômeno externo, o praticante do Tantra vai relacioná-la com sua prática de yidam, unindo-se e fundindo-se com elas. Uma vez que em sua prática reconheceu o yidam como a radiância natural da mente iluminada, está preparado para ver as manifestações com esse reconhecimento, deixando-as surgir como a deidade. Com essa percepção pura, o praticante reconhece o que quer que apareça no bardo como nada além da manifestação do yidam.

(Sogyal Rinpoche, O Livro Tibetano do Viver e do Morrer)

A principal manifestação do estado iludido no qual estamos agora, sem sermos capazes de reconhecer nossa verdadeira natureza, é perceber o mundo dos fenômenos como uma mistura de bom e ruim, de agradável e desagradável. O objetivo da prática na qual nos visualizamos como uma divindade e todo o mundo como uma terra pura não é o de novamente fabricar algo artificial; pelo contrário, é o de treinar a mente para uma percepção pura, o que significa reconhecer a primordial natureza pura, tanto de nossa mente quanto do mundo dos fenômenos.

(Kyabje Shechen Rabjam Rinpoche, The Essence of the Diamond-like Teachings)

As divindades nas práticas do Vajrayana têm centenas e milhares de aparências por causa dos níveis e máculas de cada indivíduo. A fim de subjugar cada tipo de mácula, há a necessidade de haver aquela divindade. Estas divindades não são considerados "deuses", mas sim sambhogakayas [corpos de emanação] do Buda. Do ponto de vista último, todas as divindades são apenas como o espaço — não-duais e não há nem mesmo uma divindade!

(Shangpa Rinpoche, Introduction to Vajrayana)

Tomando o gelo como analogia, você pode dizer que gelo é água; a natureza do gelo não é diferente da água. No entanto, o gelo possui características próprias; sendo sólido, sua aparência difere da água. De igual modo, embora o samsara não seja, em última análise, diferente de um reino de experiência pura, ele tem suas próprias características. Se não removemos os enganos e ilusões da mente, enxergamos apenas essas características.

Em geral, percebemos de forma ordinária, convencional. Nós os vemos de maneira impura — sempre nos prendendo ao lado negativo, sempre nos focando no que há de errado. Esse, simplesmente, é o nosso hábito. Através das práticas Vajrayana, reconhecemos que a verdadeira natureza do samsara é a terra pura, a experiência pura. Não estamos fingindo que uma coisa seja aquilo que não é. Acontece apenas que não a vemos realmente como é — e é por isso que praticamos. Ao mantermos o reconhecimento da nossa verdadeira natureza, nós aumentamos o aquecimento, removemos o frio; então, as aparências relativas, que temos a impressão de serem sólidas, retomam sua forma natural, como o gelo que derrete. Em essência, nunca fomos outra coisa que não a terra pura. No entanto, não vamos perceber isso enquanto permanecemos sujeitos ao frio das ilusões e enganos da mente.

Se a verdadeira natureza do samsara fosse inteiramente óbvia para nós, estaríamos iluminados — não precisaríamos fazer prática. Somente quando nossos obscurecimentos temporários são removidos por meio da prática é que natureza fundamental é revelada.

(Chagdud Tulku Rinpoche, Portões da Prática Budista)

Todas as aparências surgem de uma dependência mútua. Algo aparece em determinado tempo, permanece por um pouco e desaparece novamente. As duas fases da meditação são usadas a fim de simbolizar que o principio de surgimento e desaparecimento permanecem até o nível puro. O surgimento da divindade simboliza que o apego ao surgimento do mundo comumente experienciado é purificado. A fase de desenvolvimento possuí diferentes elementos: primeiro a pessoa visualiza a si mesma como a divindade, depois a pessoa visualiza a divindade no espaço em frente de si mesma e faz oferendas, preces, etc. A razão da pessoa se visualizar primeiramente como yidam é a seguinte: nós todos nos consideramos muito importantes. Se agora alguém nos diz, "Você não possui existência real", é difícil para nós entendermos e aceitarmos. Na fase de desenvolvimento se lida com isso de uma forma em que não pensa se existe ou não, mas simplesmente se é indiferente a essa questão e se visualiza na forma da divindade. Se a pessoa se visualiza como a divindade, sabendo que o yidam é uma expressão da pureza completa, o apego ao "eu" desaparece naturalmente.

A visualização do yidam no espaço à sua frente trabalha de uma forma similar. Nesse instante nos apegamos a todos objetos externos que percebemos. Na fase de desenvolvimento visualizamos todo o mundo externo como o palácio da divindade. O yidam está no meio desse palácio, e todos os seres aparecem na forma do yidam. Pela visualização das aparências impuras na sua forma pura o apego é superado.

Portanto, é importante entender que todos os elementos da fase de desenvolvimento possui um conteúdo simbólico. Sem esse entendimento, por exemplo se acreditar que a divindade possuí uma existência real, o praticante apenas se confunde e aumenta a ilusão. Ao se utilizar das diversas fases de desenvolvimento e consumação dos yidams é importante saber o significado das diferentes formas. Por que, por exemplo, se visualiza dezesseis braços, quatro pernas, etc. se duas são na verdade suficientes? Acreditar que nós devemos visualizar assim porque na verdade os yidams possuem essa aparência seria um mal-entendido. Acreditar na verdadeira existência do yidam é um pouco ridículo e muito confuso. Ao invés disso devemos entender que há algo que é purificado e algo que é um método de purificação. A visualização do yidam com quatro braços, por exemplo, é um símbolo para purificar nosso modo geral de experienciar as coisas na assim chamada categoria quádruplo. Por exemplo os quatro elementos e tudo mais que acreditamos se apresentar de forma quádruplo. Os três olhos do yidam simbolizam a superação de nosso modo de pensar em categorias triplas. Por exemplo os três tempos. O mesmo se aplica em todos os outros detalhes da divindade; todos eles tem o significado de purificar nosso apego comum ao mundo que nós experimentamos.

(Jamgön Kongtrül Rinpoche, Yidams


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