A QUE ESCOLA PERTENÇO?



- um guia para quem está se interessando pelo Buddhismo
por Ricardo Sasaki


Introdução – A Que Escola Pertenço?
O Buddhismo está dividido naquilo que hoje é conhecido como escolas. Iniciantes geralmente pensam que o Buddhismo é um só, e se perguntam freqüentemente por onde começar. O que é ser buddhista? Como se iniciar no caminho? Entretanto, como cada escola é muito diferente em suas práticas e métodos doutrinais, logo o iniciante constata que ‘ser buddhista’, ou mesmo, ‘por onde começar’, são questões que precisam ser resolvidas a depender da escola que decidem conhecer e seguir. Tradicionalmente é dito que o Buddha, em sua infinita compaixão, ensinou 84.000 ensinamentos, adaptados a cada tipo de seres existentes. Num certo sentido, as diversas escolas são uma amostra dessa infinita compaixão, cada uma talvez mais adaptada para um tipo particular de ser. Logo, a pergunta se coloca: “A que escola pertenço?”
Nestas poucas linhas espero dar algumas orientações, caracterizando as diversas escolas, seus métodos e ênfases principais. Com isso, espero que aquele que está se interessando pelo Buddhismo agora, possa ter um primeiro guia geral, apenas um mapa inicial, que jamais poderá substituir o contato real com as várias escolas, mas que dará as primeiras luzes sobre esse assunto tão complexo e crucial. Estou bem consciente que com isso corro o risco de sofrer inúmeras críticas. Sou, na realidade, o primeiro a fazê-las, e, justamente por me dedicar a estudar a história da Tradição Buddhista já há anos, sei bem o quão precária seria qualquer tentativa de resumir em poucas páginas as diferenças e desenvolvimento desse labirinto que é a árvore búddhica com seus múltiplos galhos. Certamente faltará mencionar algumas características que os praticantes consideram fundamentais em sua própria escola. Outras vezes, enfatizar um ponto que certas subdivisões de uma escola poderiam não corroborar. Há o risco de se cair num estereótipo anexado a cada escola, distanciando-se da vivência prática que se tem ao frequentar um centro.
Todas as escolas têm subdivisões, e caracterizando-as de modo geral, nem sempre conseguimos fazer jus às diferenças. Mas, no entanto, esse é um trabalho que acredito ser útil. E se há a chance de ajudar aqueles que começam a se interessar pelo colosso que é o Buddhismo, por que não tentar empreender o impossível? Então, minhas duas únicas justificativas para esse artigo são as seguintes. Por circunstâncias do destino, frequentei e pratiquei na maioria dessas escolas, não ocasionalmente, mas em geral por vários anos. Tais circunstâncias me colocam então numa posição oportuna de alguém que não falará de algo como tendo sido meramente estudado teoricamente e ‘desde fora’. Tendo vivido e praticado nos centros e mosteiros dessas várias escolas, feito amigos e companheiros que até hoje participam significativamente de meu caminho, meu interesse em engrandecer uma escola e rebaixar outra é bem menor do que se poderia esperar de alguém obstinadamente aferrado à própria tradição. A segunda justificativa é que escrevo com anukampā, uma palavra que na língua pāli expressa o desejo sincero de que algo dado seja de benefício real aos seres. Assim, mesmo que imperfeito, espero que este artigo possa ajudar nos primeiros passos do iniciante.
Convenções
Antes de começar com uma exploração das diferentes escolas porém, gostaria de esclarecer como uso alguns termos aqui. Outras pessoas, é claro, poderão usar os mesmos termos com definições diferentes e, desde que isso se trata, sobretudo, de convenções, o mais importante é saber o que cada termo significa para aquele autor em particular. Há muitas palavras que são usadas para caracterizar as chamadas ‘escolas’. Tradição, veículo, escola, ordem, linhagem, são alguns dos termos.
Tradição, para mim, é, sobretudo, uma palavra usada para se referir à “tradição espiritual”. Por outro lado, a passagem, quase inconsciente, de costumes culturais, pessoais, étnicos, etc., em oposição a uma transmissão (tradição = aquilo que é trazido) consciente de “valores espirituais através de gerações” (Aurélio), prefiro chamar de costume, ou mesmo, tradicionalismo. Com isso, prefiro entender “tradição” no mesmo sentido de Luc Benoist quando define: “Convém compreender o que significa este conceito de tradição, geralmente negado, desnaturado ou desconhecido. Não se trata de cor local, de costumes populares, de hábitos curiosos colecionados pelos folcloristas, mas da própria origem mesma das coisas. A tradição é a transmissão de um conjunto de meios consagrados que facilitam a tomada de consciência de princípios imanentes na ordem universal, já que o homem não deu a si mesmo a sua razão de viver. A ideia mais próxima, a mais capaz de evocar o que a palavra significa, seria a de uma filiação espiritual de mestre a discípulo, de uma influência criadora análoga à inspiração, tão consubstancial ao espírito quanto a hereditariedade ao corpo”.
Outro uso da palavra ‘tradição’ neste texto porém, será aquele conectado ao conjunto de formas buddhistas de um país específico. Falarei, então, de tradição birmanesa, tradição chinesa, tradição coreana, etc. Fazendo assim, desejarei especificar todas as escolas buddhistas de um determinado país ou uma escola buddhista específica daquele país, desde seu início até os dias atuais.
‘Escola’ é um termo de uso mais restrito que o de ‘Tradição’, sendo definida mais fortemente pela orientação doutrinal e pelo conjunto da prática. Alguns costumam se referir como ‘escolas’, os cinco conjuntos doutrinais mencionados frequentemente em obras mahāyānas. Elas seriam: vaibhāṣika, sautrāntika, cittamatra (yogacāra) e madhyamika. O Madhyamika, por sua vez, ainda se dividiria em Svatantrika e Prasāngika. Dentre elas, a escola Prasāngika é considerada superior por alguns. Mas é claro que essa classificação para as escolas não seria possível aceitar, pois exclui boa parte das escolas buddhistas existentes hoje. Igualmente, que prasāngika seja a “visão final e superior a todas as outras”, é, obviamente, a crença apenas daqueles que seguem tal visão, e, é claro, não poderiam deixar de achar que ela é a superior. Mais ainda, essa classificação confunde dois tipos diferentes de classificação sob o mesmo nome de ‘escola’, como veremos adiante.
Ainda outra classificação comum em certos meios buddhistas é a de ‘veículo’ (yāna), que seria um sistema particular de métodos onde cada um leva a um tipo diferente de realização espiritual. A divisão mais comum é entre Hinayāna, Mahāyāna e Vajrayāna. Em alguns lugares se as classifica ainda mais detalhadamente, existindo, segundo eles, nove veículos: śravakayāna, pratiyekabuddhayāna, bodhisattvayāna, kriyayogayāna, upayogayāna, yogatantrayāna, mahāyogayāna, anuyogayāna, atiyogayāna.
Essa visão de veículo é muito enfatizada em algumas escolas e nelas pode ser descoberta como algo útil. Para o seguidor buddhista de qualquer outra escola, entretanto, ela é de bem pouca utilidade, pelo menos como é apresentada. O primeiro problema está na própria palavra “veículo” e sua divisão ternária, dando a impressão de que há três objetivos propostos pelo Buddha, cada qual progressivamente mais apropriado para seres “mais dotados”. Que se fale que o Buddha ensinou algo como “liberação pessoal” parece-me puro nonsense. E que ele teria ensinado métodos de liberação mais rápidos que outros, e ainda assim muitos tivessem escolhido os mais vagarosos, outro nonsense.
Ademais, com raríssimas exceções individuais, todos os buddhistas, nessa classificação, fariam parte de algum dos três primeiros veículos, sendo privilégio dos buddhistas de escolas que se utilizam desse esquema pertencerem aos seis últimos veículos, justamente os mais superiores. Por fim, para o estudioso interessado em compreender e, assim, melhor mapear o mundo buddhista, as palavras usadas para designar os três ou nove veículos, sendo frutos de uma pura incompreensão histórica que foi transformada em categorias interiores de tipos de realização, não conseguem abranger de forma satisfatória a multiplicidade das expressões buddhistas no espaço e no tempo. Mas, como lembro acima, talvez num contexto específico de ensinamento ela pode ser descoberta como algo útil, pelo menos temporariamente.
A palavra ‘linhagem’ entendo como uma especificação intra-escola, aquela de mestre-discípulo. Ela não é exclusiva, e um mesmo indivíduo pode deter linhagens diferentes, e isso ocorre freqüentemente. Linhagens não implicam necessariamente uma transmissão oral contínua. Elos de uma linhagem podem estar separados por décadas ou mesmo séculos e nunca terem se encontrado. A noção de linhagem foi também utilizada frequentemente como forma de legitimação dos ensinamentos. Ser capaz de traçar sua linhagem desde o Buddha investe o ensinamento de autoridade. Isso, porém, é uma faca de dois gumes: De um lado, serve como uma prova a mais da fidelidade do ensinamento dado; de outro lado, como linhagens podem ser falsificadas, desvirtuadas ou mesmo inventadas, favorece a idiossincrasia dos ensinamentos de um indivíduo passar como se fosse algo aprovado e constante daquela linhagem ou escola em particular. Os que pouco conhecem, compram a estória.
Outra classificação que entendo útil é o de ‘ordem’, a ser aplicada no caso do monasticismo. Como o Buddhismo comporta uma dimensão monástica para aqueles que resolvem seguir esse caminho, fundamental é o código disciplinar no qual se é ordenado, ou seja, o ‘vinaya’.
Aceita as convenções acima, vejamos quatro casos individuais para exemplificarmos seu uso prático:
1. Arnaldo pratica num Centro Theravāda em que o principal método ensinado pode ser discernido como centrado na observação metódica do levantar e abaixar do braço (não vou entrar em detalhes sobre o porquê disso). Podemos dizer, segundo a convenção proposta, que Arnaldo se insere na Tradição Buddhista, da Escola Theravāda, na linhagem de Ajahn Dhammadaro. Se ele fosse se tornar monge, ele se ordenaria no Vinaya Theravāda. Se ele se utiliza, pelo contrário, da observação metódica dos fenômenos materiais e mentais usando como base a respiração, uma possibilidade é que Arnaldo se insira na Tradição Buddhista, da Escola Theravāda, na linhagem de Ajahn Buddhadāsa.
2. Carla pratica num Centro Zen em que se pode notar a recitação de textos em japonês e os meditantes se encontram voltados para a parede. Uma possibilidade é que Carla se insira na Tradição Buddhista, da Escola Zen, subdivisão Soto Zen, da linhagem de Taisen Deshimaru (somente como um exemplo).
3. Elaine frequenta um templo Terra Pura, regulamente recita textos e cânticos em japonês, bem como utiliza a prática do nembutsu. Uma possibilidade é que Elaine se insira na Tradição Buddhista, da escola da Terra Pura, subdivisão Verdadeira Terra Pura (Jodoshin), subsubdivisão Higashi Honganji.
4. Dionísio pratica num Centro de Buddhismo Tibetano, utilizando-se de mantras e visualizações. Uma possibilidade é que Dionísio se insira na Tradição Buddhista, da escola Karma Kagyu, da linhagem de Kalu Rinpoche.
No caso de Carla e Dionísio, se desejassem se tornar monges, apesar de se poder dizer que pertenceriam respectivamente à Ordem Zen e Tântrica, eles se ordenariam em Vinayas antigos, provavelmente Dharmaguptaka e Mūlasarvāstivāda. Todas as ‘escolas’, com exceção do Theravāda, se utilizam de Vinayas antigos sobre os quais sobrepuseram regras e ritos extras. Isso porque essas escolas, sendo mais modernas que o Theravāda, acrescentaram, modificaram ou substituíram o conjunto doutrinal de escolas antigas, preservando, entretanto, seu Vinaya, que é a condição sine qua non para que pudessem reivindicar alguma autenticidade. O Theravāda é a única em que o conjunto doutrinal sempre esteve unido ao Vinaya. Esse, aliás, é um dos problemas com a divisão em veículos. Alguns dos elementos da classificação são ordens, outros se referem a métodos e também a pontos de vista filosóficos. Essas três categorias distintas são então (con)fundidas numa única.
Bem, uma vez que a questão das convenções tenha sido esclarecida, podemos passar para nossa pergunta: ‘A que escola pertenço?’ Para nossos fins, é suficiente, inicialmente, dividir as escolas buddhistas em quatro grandes divisões, estando conscientes de que cada uma dessas divisões abrange um número de subdivisões que possuem diferenças entre si. Então, o esboço que farei é necessariamente genérico, mas que, espero, poderá ser útil numa primeira aproximação. Estou consciente de que há outras escolas além desses grandes grupos, mas sua representatividade é bem mais reduzida, a não ser que se tratem de seitas não-ortodoxas. Outra característica é que coloco ênfase naquilo em que são diferentes e não naquilo em que se parecem, pois acredito que o iniciante estará mais interessado nas peculiaridades de cada escola, que o ajudarão em sua escolha. A ordem de apresentação segue meramente a cronologia histórica.
Theravāda
A escola mais antiga existente até hoje, sua origem é atribuída, por suas tradições, aos tempos do Buddha, sendo o ensinamento ortodoxo ensinado por ele e ratificado nos primeiros três concílios. Por volta de 100 anos após a morte do Buddha, a Sangha original se separou em duas, sendo uma a Sthaviravāda e a outra a Mahāsanghika. No entanto, muito pouco sobrou em termos de evidências históricas a respeito dessa última. Por volta de 250 a.C. dois novos grupos se dividiram do seio Sthaviravāda: o Puggalavāda e o Sarvāstivāda. O Sthaviravāda que foi transmitido para o Sri Lanka passou a ser conhecido sob seu nome em pāli, Theravāda, palavra que significa ‘a posição ou palavra dos theras’. Thera são os monges mais velhos e antigos na Ordem.
A língua sacra em que seu cânon foi transmitido e é preservado até hoje é o pāli, um dialeto indiano, próximo do sânscrito. Do Sri Lanka, o Theravāda expandiu-se para a Birmânia (Myanmar), Thailândia, Laos, Camboja e, com menor força, para o Vietnam, península malaia e Indonésia, países estes que também receberam transmissões de outras escolas vindas do nordeste indiano.
Essa escola está centrada no desenvolvimento de qualidades mentais, na meditação e no estudo. O desenvolvimento de qualidades mentais pode ser resumido como o desenvolvimento de cinco fatores essenciais: a fé, a energia, a vigilância, a concentração e a sabedoria. Esses são os ‘cinco amigos’ que se deve ter por perto. A prática da meditação, geralmente, não consiste de apenas um método, mas num conjunto deles, e cada Centro Theravāda legítimo tem sua própria seleção. Dentre esse conjunto, a prática principal centra-se no chamado Satipaṭṭhāna, um conjunto de prática proposto enfaticamente pelo Buddha como a essência do caminho por ele proposto. Práticas complementares podem incluir visualizações, mantras, utilização de movimentos corporais, recitações, além de outras. Fundamental na prática é a participação em retiros, períodos intensivos de meditação, que podem ir de um dia a vários meses, e também é comum as entrevistas individuais com o professor.
O estudo é grandemente incentivado, e centra-se em torno do Cânone e de seus Comentários (Aṭṭhakatha) tradicionais. Isso é complementado por textos de mestres antigos e contemporâneos. A prática num Centro Theravāda geralmente consiste de recitações de textos sacros (pūjā), da prática da meditação (bhāvanā) em variadas posturas, e de palestras sobre o Dhamma (desanā).
Terra Pura
Uma distinção crucial deve ser estabelecida de antemão entre a escola em sua manifestação chinesa e sua manifestação japonesa. Enquanto a Terra Pura no Japão consiste de um conjunto de escolas definidas, somente com muita precaução e ressalvas se poderia dizer o mesmo da Terra Pura na China. Aqui, a perspectiva ‘terrapureana’ penetra em todo o Buddhismo Chinês, e mescla suas convicções em todas as escolas distintas, a um ponto que chega a ser difícil identificar algo claro e distintamente ‘Terra Pura’ na China. Seu desenvolvimento metodológico se operou principalmente dentro de outra escola, a T’ien T’ai, e hoje está inexoravelmente combinada à escola Zen. Essa não é a única diferença entre as escolas chinesa e japonesa, o que comentarei mais a esse respeito adiante.
Conforme a tendência chinesa em formar escolas a partir de uma seleção de sūtras escolhidos como contendo a essência do ensinamento do Buddha, a escola da Terra Pura se centra ao redor de sūtras que têm como personagem principal o Buddha Amitābha, um Buddha que, segundo esses sūtras, foi tornado conhecido para a humanidade pelo Buddha Shakyamuni, doravante chamado nessa tradição de Buddha Histórico. O Buddha Amitābha, tendo acumulado imensuráveis méritos no passado, proferiu votos de salvar todos os seres sencientes que nele confiassem. Expressão dessa confiança se manifesta na recitação do nome sagrado de Amitābha, recitação chamada de nien-fo na China e nembutsu no Japão.
Aqui temos uma das grandes diferenças entre a perspectiva chinesa e a japonesa. Para a Terra Pura chinesa, a prática do nien-fo coloca o indivíduo em ressonância (ganying) com o Poder de Amitābha, que passa a atuar juntamente com o esforço individual. A prática, que consiste não apenas da recitação o mais frequente possível, mas também de visualizações, é uma busca por este entrar em sintonia com o Poder do Outro.
Já na tradição japonesa, e mais especificamente na subdivisão ‘Verdadeira Escola da Terra Pura’ (Jodoshin), a fé (shinjin) é o fundamental, sendo a confiança absoluta no Poder Misericordioso de Amitābha o centro da prática e não qualquer esforço por parte do indivíduo. Enquanto que a Terra Pura chinesa prevê um trabalho conjunto de esforço próprio e poder de Amitābha, a Terra Pura japonesa, em particular aquela de Shinran, centra-se no absoluto do Poder de Amitābha.
Os sūtras mahāyānas (que têm uma natureza diferente daquela dos suttas antigos) que mencionam Amitābha são originários da Índia, provavelmente compostos entre 100 a.C e 100 d.C. Nāgārjuna, Asanga e Vasubandhu, os idealizadores dos dois sistemas filosóficos – Mādhyamika e Yogacāra – que serviram de suporte teórico para o nascente movimento Mahāyāna, mencionam a prática da Terra Pura entre seus escritos e são considerados ‘patriarcas’ pelas tradições da Terra Pura. Entretanto, o impulso efetivo para essa escola foi o início da composição de comentários chineses a esses sūtras a partir do quinto século d.C.
Os estudos centram-se nos sūtras que mencionam Amitābha, como o Sūtra da Vida Infinita, o Sūtra da Meditação e o Amida Sūtra, e na obra de comentadores e fundadores de escolas nacionais. A prática num centro Terra Pura raramente consiste da recitação do nien-fo/nembutsu em conjunto, que é mais uma prática individual, mas geralmente consiste de recitações de textos compostos pelos diversos ‘patriarcas’, de discussões em grupo sobre os textos da tradição e de palestras sobre a Doutrina.
Zen
As tradições Zen atribuem seu início a uma transmissão ‘coração a coração’ que teria ocorrido entre o Buddha e um de seus discípulos principais, Mahākaśyapa. A partir daí, numa sucessão de mestres, o Zen foi transmitido até os dias de hoje. Historicamente, contudo, o que veio a ser caracteristicamente chamado de Zen foi um ensinamento atribuído a Bodhidharma, um monge indiano que veio à China no século sexto d.C. A partir de seus discípulos, vários tipos diferentes de ‘Zen’, palavra que significa simplesmente ‘meditação’, acabaram surgindo. O Zen é diferente em estilo nos diferentes países em que se encontra: China, Coréia, Japão e Vietnam. Assim como as outras escolas buddhistas, à medida que se enraíza no Ocidente, ele também se adapta e se modifica às novas condições.
Como seu próprio nome indica, o Zen centra-se na prática da meditação sentada (zazen) que é praticada segundo dois estilos principais. Um é aquele com o uso de koans – frases e/ou estórias frequentemente paradoxais e aparentemente absurdas -, aos quais o praticante deve voltar sua completa atenção. O outro estilo, onde o uso do koan é mais reduzido e mais uma matéria de estudo do que a ser utilizado enquanto método meditativo, centra-se na prática silenciosa, na busca do estar atento a todas as coisas percebendo a vacuidade de substância em todos os fenômenos. Nesse segundo estilo, típico do Sōtō Zen japonês, o Zen se aproxima da escola Theravāda, porém nessa última os ensinamentos sobre meditação são mais metódicos e ensinados gradualmente, enquanto que o Zen depende de uma prática contínua e dedicada em torno de instruções relativamente simples. Ambos os estilos (exemplificados pelas escolas japonesas Rinzai e Sōtō respectivamente) também utilizam uma prática de concentração preliminar à prática principal. Práticas complementares são a meditação andando e as recitações. Um lugar importante também é ocupado pelas entrevistas individuais (dokusan) com o professor e suas palestras sobre o Dharma (teishô). Fundamental na prática Zen são os retiros (sesshin), que podem variar de um dia até vários meses, como os retiros do Theravāda.
O estudo no Zen não é formalmente encorajado, seguindo a mitologia própria da transmissão coração a coração. Na prática, o estudo é centrado principalmente na obra dos ‘patriarcas’ e fundadores locais do Zen, bem como na obra de mestres contemporâneos. Muitos também gostam de ler e refletir sobre koans, mesmo que esses não façam parte de sua tradição em particular.
A prática num Centro Zen geralmente consiste de recitações de textos sacros (particularmente o Sūtra do Coração e trechos de outros sūtras e comentários), da prática da meditação sentada e andando (zazen e kinhin) e de palestras sobre o Dharma (teishô).
Tantra
As primeiras manifestações do Buddhismo Tântrico podem ser encontradas na Índia do sexto século d.C. Surgindo ao mesmo tempo em que o Tantra Hindu, há uma discussão interminável sobre a origem do Tantra e as influências em jogo em seu aparecimento. A partir da dinastia Pāla de Bengala no século oito d.C., o Buddhismo Tântrico se expande também para a China, Japão, Tibet e Sudeste Asiático. O Tantra, que o Buddhismo Tibetano é o exemplo mais conhecido, faz uso extensivo das visualizações, mantras e mudrās. Essas técnicas existem em outras formas de Buddhismo, mas aqui atingem o ápice de sua especialização e aplicação.
Uma característica marcante do Buddhismo Tântrico é a importância fundamental de se ter um mestre (guru), sendo ele o foco de uma das práticas mais comuns em todas as escolas tântricas, o guru yoga. O mestre deve ser visualizado e tomado como um ser absolutamente perfeito para que o método que ensina possa de fato ter efeito. Esse tipo de visualização é subsequentemente estendido a todos os seres, contemplados então como essencialmente puros e imaculados. A construção dessa realidade ideal (maṇḍala) é gerada através dos cânticos, repetições de mantras e visualização meditativa. Os métodos, para serem usados com eficácia, devem ser antecedidos por uma iniciação, que ‘autoriza’ o indivíduo a praticá-los. É comum que um praticante acumule um número de iniciações, podendo assim praticar métodos diferentes.
Apesar de cada escola desenvolver uma forma própria, incluindo textos e métodos próprios, o desenvolvimento passa razoavelmente por um esquema comum de duas etapas: as práticas preliminares (sngon ‘gro) externas (com contemplações sobre a natureza do mundo saṁsārico) e internas (um conjunto de práticas que vai desde a tomada de refúgio no Buddhismo e no Guru até a prática do guru yoga propriamente dita); e a prática principal (dngos gzhi) – com suas três fases: geração, perfeição e grande perfeição (sendo a última fase nomeada diferentemente dependendo da escola. ‘Grande Perfeição’ é o nome na escola Nyingma). Sendo assim, a fé no mestre se eleva a um estágio somente vislumbrado talvez na escola Rinzai Zen, onde o mestre doador do koan também é essencial, mas num sentido diferente ali. A importância do mestre no Buddhismo Tântrico se reflete em suas várias práticas e dificilmente se poderia pensar num praticante de Buddhismo Tibetano não pertencente a uma comunidade específica de um mestre. Esse, repito, é apenas um esquema geral que comporta variações dependendo das escolas.
A Passagem do Mundo Ideal para o Real
Para aquele que começa a se interessar pelo Buddhismo e considerar a ação de sair do mundo das leituras para frequentar um grupo de prática, alguns obstáculos podem ser vislumbrados. O mundo ideal dos livros é diferente na prática. Centros, templos e grupos buddhistas são frequentados por estranhas criaturas conhecidas na língua pāli como manussasantati, uma espécie de seres que habita um caótico mundo chamado manussaloka. Conhecidos no ocidente sob o nome de homo sapiens, nem sempre se comportam com a sabedoria que seu nome poderia supor.
Conjurado por encantamentos vindos do mundo ideal das leituras, o iniciante irá encontrar vários desafios em sua busca. Os diversos centros, templos e grupos, infelizmente, não são todos iguais. Digo ‘infelizmente’ porque isso torna o trabalho daquele que está iniciando mais difícil, mas, é claro, há vantagens no fato de os centros serem diferentes, oferecendo assim uma diversidade maior de escolhas. Mas, para quem deseja conhecer, a solução final será mesmo visitar este ou aquele centro, consciente, entretanto, de que mesmo pertencente ‘teoricamente’ a uma mesma escola, eles podem ser muito diferentes entre si. E uma vez que são tão diferentes não importará o quanto você saiba de antemão sobre eles e sobre as escolas que teoricamente eles ‘representariam’, o que você encontrará ainda irá surpreendê-lo.
Uns incentivam estudo, outros prática, outros ação social; as práticas são diferentes, a qualidade dos estudos também; uns são mais populares, outros mais refinados, outros mais elitistas, outros mais sérios, outros mais me-engana-que-eu-gosto; uns mais organizados, outros uma bandalheira, uns populosos, outros semi-desertos; uns com moral, outros amorais, outros imorais; uns bons para se fazer amigos e se divertir, outros para aprender o que é o Dharma, outros para se aprender o que o Dharma não é.
Se por um lado ninguém vai ser capaz de dizer a você quais são todas as diferenças, uma coisa valerá seu esforço antecipado: ser capaz de identificar mais rapidamente a falso do legítimo, a festa do trabalho sério. Nem sempre isso é fácil. Linhagens podem ser falsificadas, o que está escrito nos sites e brochuras nem sempre é verdadeiro, indivíduos quase sem nenhuma experiência podem abrir centros e se apoiar na falta de conhecimento daquela escola específica para angariar adeptos e passar suas próprias ideias e devaneios como se fossem legítimos. Uma coisa é possível adiantar a respeito da questão das diferenças entre centros e grupos buddhistas: certamente tudo não é a mesma coisa, e certamente o resultado não será o mesmo em qualquer lugar. Considere o Dharma como um pãozinho francês: certamente ele não é o mesmo em qualquer padaria.
Fazendo Nossa Parte
Mas caso se encontre um centro, templo ou grupo sério, basta frequentá-lo? Ao mesmo tempo em que todas as tradições buddhistas indicam a importância do professor e do ambiente apropriado de ensino que ele organiza ao seu redor, uma atenção especial deveria ser ao próprio processo de aprendizado. Chamo isto de ‘aprender a aprender’. Acostumados a sempre receber as coisas prontas (quanto mais pronto e rápido para consumo, melhor), por vezes confiamos excessivamente no professor, na escola ou mesmo no livro, para nos prover de imediato aquilo que almejamos. O professor passa a ser visto como aquele que pode apontar a ‘natureza da própria mente’ do aluno; a escola (templo ou mosteiro) como o ambiente único de aprendizado correto; e os livros como aqueles que nos darão todas as respostas que precisamos conhecer. Ao mesmo tempo, negligenciamos nosso próprio papel neste tão valoroso processo que é o aprendizado sobre nós mesmos. O que é aquilo que trazemos para esta relação educacional? Estamos atentos ao nosso dever e somos ativos no processo, ou nos comportamos no caminho como apressados consumidores de comida congelada (com seus microondas serviçais prontos para nos servir) sem termos trabalho algum? É possível aprender muito observando a nós mesmos e como reagimos aos desafios que a vida nos oferece. Todas as coisas se tornam nossos professores então, e mesmo nossos professores formais se tornam professores melhores, pelo simples fato de que passamos a utilizar a inteligência e a reflexão sábia como formas de nos relacionar com tudo ao nosso redor.
Para que serve um professor então? Aprender a aprender não é algo tão fácil. Aprender o quê? Olhar para onde? O que procurar? O professor adequado – com ampla experiência naquilo que se propõe a fazer -, a escola e os livros, aparecem então no seu melhor papel: como guias, e não como depositários de respostas. Por onde começar a estudar, qual o esquema geral do caminho, quais as prioridades que devem ser atendidas em primeiro lugar, todas essas são questões que levam tempo, dedicação e experiência para serem melhor entendidas. À medida que aprendemos a observar e a saber o quê buscar, também nosso horizonte educacional se expande. Professores e escolas passam a ser encontrados em mais lugares, praticamente tudo passa a ser um professor em potencial, pois começamos a saber o que ver.
A prontidão da mente aberta e atenta transforma todos os seres em mestres. Fracassar em perceber essa lição pode nos levar na direção oposta daquela indicada pelo Buddha, apesar de pensarmos que estamos praticando bem o Dharma. Podemos acabar submergindo num grupo de adoradores deste ou daquele ‘mestre’, com suas iniciações secretas e especiais, ou com seus peculiares maneirismos, um novo sistema de castas e clãs (mais conhecidos como ‘panelas’) de pessoas ‘especiais’ porque fizeram este ou aquele retiro, iniciação ou prática, objetos de inveja e admiração dos que ‘apenas estão entrando na senda’. Aqui começa o culto e termina o caminho; inicia-se a arrogância e termina-se o trabalho de extinção das aflições e impurezas mentais.
O Que Fazer Quando Se Está Só?
Uma das dificuldades para aqueles que iniciam estudos no Buddhismo é a situação de se encontrar só, tendo que estudar somente por meio de livros, sem ninguém para conversar. Mesmo quando se tem um grupo, muitas vezes a prática pessoal acaba caindo numa monotonia por falta de estímulos. Para isso, uma das melhores soluções é a de encontrar um centro buddhista legítimo perto de você ou um grupo de estudos e prática. É importante este contato: trocar ideias, praticar junto. Mas, e se não existe nada em sua cidade? Bem, porque não iniciar um pequeno grupo? Sem pompa, nem circunstância, entre em contato com amigos que possam ter interesses similares. Tomem um bom livro como guia, leiam cada capítulo e discutam. Alguns têm instruções básicas de meditação que podem começar a ser praticadas. Use também as listas de discussão via internet para esclarecer suas dúvidas, integre-as na sua prática. Quando ficar sabendo de algum retiro, esforce-se por participar, não importando qual tradição. Para quem está começando, isso não é tão importante. Há muitas formas de se começar e frequentemente são melhores do que estudar sozinho.
É importante lembrar que um dos motivos de ser difícil levar a prática buddhista adiante, é o mesmo motivo do porquê no nosso país tudo ser muito difícil. Isto pode ser sintetizado numa palavra: Iniciativa. Ou melhor, falta dela. Notemos como mesmo uma lista de discussão funciona, em qualquer lugar do mundo. Quem frequenta tais listas (de não importa qual tema) pode notar facilmente que sempre há muitos inscritos, mas apenas alguns participam. Afetuosamente os ‘observadores’ são chamados de ‘corujas’. Queremos ouvir, ler, aprender. Ótimo! Mas o outro lado da moeda é compartilhar, colaborar, discutir. Lidamos da mesma forma quando participamos de cursos. A maioria senta-se no fundo, escutando. Poucos são os que fazem perguntas, comentários, sugestões. Sentar-se na frente é até considerado ruim por alguns (não é curioso que cdf’s, que querem de fato aprender, sejam ridicularizados por seus colegas?).
O que isso tem a ver com o tema? Bem, se você quer sair do lugar onde está é preciso se mover, iniciar. Esperar alguém mandar um texto, fundar um grupo, esperar o excelso Buddhismo instalar um centro na casa da esquina não vai adiantar. Acredite: com 90 anos, você ainda estará esperando… Frequentemente escuto pessoas dizendo que ainda não é possível iniciar-se no Buddhismo pois não há nenhum grupo em seu bairro. E pensar que os peregrinos chineses de antigamente atravessavam o deserto de Gobi e as cordilheiras dos Himalayas para chegar na Índia e estudar o Dharma!
É preciso sair da dependência do outro. O outro é importante. Para compartilhar, ajudar, colaborar. Mas não para fazer o trabalho que é de cada um. Por mais duro que seja reconhecer, o caminho não é para os tímidos. Como diz Chogyam Trungpa: o caminho é para os guerreiros espirituais. Se o Buddha estivesse pregando na pracinha ao lado, não iríamos visitá-lo por timidez? Não há livros? (Concordo que são caros). Vá à biblioteca, peça emprestado, divida com amigos. Tem acesso à internet? Então há milhares de textos e materiais disponíveis. Ah, mas a maioria é em inglês… Ora, aprendamos! Você vai morrer antes de traduzirem aquele livro que pode ser fundamental para o seu caminho. Não entendeu algo, pergunte para quem você considere que saiba um pouco mais que você. Não tem ninguém assim em sua cidade? Para que servem cartas e email? Faça anotações, resumos, releia, converse com outros. No Cristianismo, há um livro chamado “A Imitação de Cristo”. O Buddha exemplificou o árduo trabalho de busca por anos sem descanso. E após o Despertar trabalhou por 45 anos ajudando os seres a acordar. Não se poderia esperar nada menos de quem deseja segui-lo.
Caso more numa cidade em que não haja nenhum grupo de sua escola preferida, pense em frequentar o de outra escola. Quem sabe não se surpreenderá com o que encontrar? E se não houver qualquer grupo buddhista em sua região ou se sentir que as opções existentes de outras escolas não atendem ao que você almeja e se interessa, como foi dito no começo desta seção, pense em iniciar um pequeno grupo com amigos e pessoas afins. Com o tempo, se houver interesse, podem mesmo entrar em contato com algum centro legítimo e autorizado daquela tradição, pedindo por orientações e auxílio. Alguns centros e templos estão abertos a esse tipo de apoio, e pode ser muito interessante contar com uma sustentação continuada de sua prática vinda de centros organizados e professores autorizados nas tradições específicas. À medida que mais pessoas se interessem, o grupo também pode pensar em convidar professores e instrutores para atividades de prática mais intensa e compacta, servindo como impulso renovado para a prática regular. Seja como for, não fique parado. Estude, pratique, aplique na vida.
Conclusão
No início deste artigo disse que, num certo sentido, as diversas escolas são uma amostra da infinita compaixão do Buddha, cada uma talvez mais adaptada para um tipo particular de pessoa. Mas creio que essa é uma frase que pode ser melhor escrita. Se é verdade que hoje todas as escolas estão ‘disponíveis’ para o público em geral, é um fato que em cada país e período histórico apenas algumas poucas se faziam presentes, ou mesmo uma única. Onde estaria então a compaixão do Buddha em não providenciar que todas as abordagens possíveis estivessem disponíveis em todos os países e em todos os períodos históricos? Creio que a compaixão do Buddha é maior do que isso, e o modo como prefiro ver as coisas é o de acreditar que cada escola contém, na verdade, todos os métodos e abordagens necessárias para qualquer tipo de pessoa. A compaixão não seria compaixão verdadeira se apenas o período em que estamos, em sua oferta quase caótica de tantos caminhos, fosse aquele em que todas as personalidades pudessem encontrar seu nicho próprio. Cada escola, em seus países e épocas específicas, é capaz de oferecer múltiplos métodos. E isso é feito por um contínuo mergulhar nas fontes do Dharma, redescobrindo sempre ‘novos’ métodos antigos, desdobrando abordagens numa constante adaptação aos seres do tempo e espaço em questão. Tudo está contido no Dharma original. E sempre esteve.
Dhammacārya Ricardo Sasaki
~Upāsaka Dhanapala
~Mahāsadhammajotikadhaja

Centro Buddhista Nalanda
(Nalanda Bauddha Madhyasthanaya)

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