Dharma na Vida Diária

Alexander Berzin

Morelia, México, 6 de Junho de 2000


Dharma como Medida Preventiva

Pediram-me para falar sobre a prática do Dharma na vida diária. Nós temos de saber o que queremos dizer com Dharma. Dharma é uma palavra sânscrita que literalmente quer dizer uma “medida preventiva”. É algo que nós fazemos de maneira a evitar problemas. Para termos qualquer interesse em praticar o Dharma, nós devemos ver que existem problemas na vida. Isso na verdade demanda muita coragem. Muitas pessoas não levam a si mesmos ou a suas vidas a sério. Elas trabalham duro o dia inteiro e depois se distraem com entretenimento e outras coisas nas noites porquê estão cansadas. Elas realmente não olham internamente para os problemas de suas vidas. Mesmo que elas olhem para seus problemas, elas não querem reconhecer que suas vidas não são satisfatórias, pois isso seria muito deprimente. Demanda coragem para realmente checar a qualidade de nossas vidas e admitir honestamente quando nós a achamos insatisfatória.

Situações Insatisfatórias e Suas Causas

Claro que existem níveis de insatisfatoriedade. Nós poderíamos dizer “Às vezes eu tenho mal humor e às vezes as coisas vão bem, mas tudo bem. A vida é assim.” Se nós nos contentamos com isso, ótimo. Se nós temos alguma esperança de podermos tornar as coisas um pouco melhores, isso nos leva a buscar uma maneira de fazê-lo. De maneira a achar métodos para melhorar a qualidade de nossas vidas, nós precisamos identificar a causa de nossos problemas. A maioria das pessoas busca pela raiz de seus problemas fora de si. “Eu estou tendo dificuldades no meu relacionamento com você por sua causa! Você não está agindo da maneira como eu gostaria que você agisse.” Nós também podemos por a culpa de nossas dificuldade na situação política ou econômica. De acordo com algumas escolas da psicologia, nós podemos olhar para eventos traumáticos em nossa infância como aquilo que nos levou a ter os problemas presentes. É muito fácil por a culpa da nossa infelicidade nos outros. Por a culpa noutras pessoas ou fatores econômicos ou sociais não leva realmente a uma solução. Se nós temos esse premissa conceitual, nós talvez possamos perdoar e isso talvez traga algum benefício, mas a maioria das pessoas conclui que apenas fazer isso não lhes aliviou de seu problemas psicológicos e infelicidade.
O budismo diz que apesar de que as outras pessoas, a sociedade e assim por diante contribuam para com nossos problemas, elas não são realmente a fonte mais profunda deles. Para descobrir a fonte mais profunda de nossas dificuldades, nós precisamos olhar para dentro. Afinal de contas , se nós nos sentimos infelizes em nossa vida, isso é uma resposta à nossa situação. Diferentes pessoas respondem à mesma situação de maneira diferentes. Mesmo se apenas nos observarmos, vemos que reagimos diferentemente às dificuldade de um dia para o outro. Se a fonte dos problemas fosse apenas a situação externa, nós deveríamos reagir da mesma maneira o tempo inteiro, porém nós não o fazemos. Existem fatores que afetam como nós reagimos, tais como ter um dia bom no trabalho, mas estes são apenas fatores que contribuem superficialmente. Eles não vão fundo o suficiente.
Se nós olhamos, começamos a ver que nossas atitudes com relação a vida, com nós mesmos e com nossas situações contribuem muito para como nos sentimos. Por exemplo, nós não sentimos “peninha” de nós mesmos o tempo inteiro, como quando nós estamos tendo um bom dia, mas basta não termos um bom dia, que o sentimento de auto-piedade reaparece. As atitudes básicas que nós temos com relação à vida delineiam em grande parte como nós experimentamos a vida. Se nós examinamos profundamente, nós descobrimos que nossas atitudes se baseiam em confusão.

Confusão Como a Fonte dos Problemas

Se nós explorarmos a confusão, vemos que um aspecto dela é a confusão sobre causa e efeito no comportamento. Nós somos confusos sobre o que fazer ou dizer e sobre o que vai acontecer como resultado. Nós podemos estar bastante confusos sobre qual tipo de trabalho pegarmos, se devemos nos casar, se devemos ter filhos etc. Se nós tivermos um relacionamento com uma pessoa, qual será o resultado? Nós não sabemos. Nossas idéias sobre o que irá suceder de nossas escolhas são realmente apenas fantasias. Nós talvez achemos que se nós tivermos um relacionamento com uma determinada pessoa, nós seremos felizes para sempre, como em um conto de fadas. Se nós estivermos chateados com uma situação, nós achamos que gritar vai melhorá-la. Nós temos uma idéia muito confusa sobre como a outra pessoa vai responder as nossas ações. Achamos que se gritarmos e dissermos o que pensamos, nós nos sentiremos melhor e que tudo vai ficar bem, mas tudo não vai ficar bem. Nós queremos saber o que vai acontecer. Desesperadamente olhamos para a astrologia ou jogamos moedas para o O Livro das Mudanças, o I Ching. Por quê fazemos coisas como essas? Nós queremos estar no controle do que acontece.
O budismo fala que um nível mais profundo de confusão é a confusão sobre como nós e os outros existimos e sobre como o mundo existe. Nós estamos confusos com relação a toda a questão do controle. Nós cremos que é possível estar completamente no controle daquilo que acontece conosco. Por isso, nós nos frustramos. Não é possível estar sempre no controle. Isso não é a realidade. A realidade é bastante complexa. Muitas coisas influenciam aquilo que ocorre, não apenas o que nós fazemos. Não é que nós estamos totalmente sem controle ou sendo manipulados por forças externas. Nós contribuímos para o que ocorre, porém não somos o único fator que determina o que ocorre.
Por causa da nossa confusão e da nossa insegurança, geralmente agimos destrutivamente sem nem sabermos que é um comportamento destrutivo. Isso se deve a estarmos sob a influência de emoções e atitudes perturbadoras e impulsos compulsivos que surgem dos nossos hábitos. Não apenas agimos destrutivamente para com os outros; nós agimos de modo auto-destrutivo em primeiro lugar. Em outras palavras, nós criamos mais problemas para nós mesmos. Se nós quisermos ter menos problemas ou ficar completamente livre deles , ou mais ainda, a habilidade de ajudar os outros a sair de seus problemas também, nós devemos reconhecer a fonte das nossas limitações.

Nos Livrando da Confusão

Digamos que nós possamos reconhecer que a fonte de nossos problemas seja a confusão. Isso não é muito difícil. Muitas pessoas chegam ao ponto de dizer “Eu estou realmente confuso(a). Eu estou embananado(a) .” Então e aí? Antes de começarmos a sair por aí, a gastar nosso dinheiro em tal curso ou em tal retiro, nós devemos considerar muito seriamente se nós realmente estamos convencidos de que é possível nos livrarmos da nossa confusão. Se nós não acharmos que é possível sair da confusão, o que estamos tentando fazer? Se nós formos apenas com a esperança de que possa ser possível nos livrarmos de nossa confusão, isso não é muito estável. É apenas uma atitude de “ Ah, como eu queria...”
Nós talvez pensemos que a liberdade poderia vir de várias maneiras. Talvez achemos que alguém virá nos salvar. Poderia ser uma figura superior, divina, tal como um Deus, então nos tornamos uma espécie de “crente pentecostal” budista. Alternativamente, nós podemos buscar um mestre espiritual, um parceiro ou outro alguém para nos livrar da nossa confusão. Em tais situações, é fácil nos tornarmos dependentes da outra pessoa e nos comportarmos sem maturidade. Nós freqüentemente estamos tão desesperados para achar alguém para nos salvar, que não paramos para pensar sobre a quem nós recorremos. Nós talvez escolhamos alguém que não está livre da própria confusão e que, por causa das suas próprias atitudes e emoções perturbadoras, tira vantagem da nossa ingênua dependência. Essa não é uma forma estável de prosseguir. Nós não devemos buscar por um professor espiritual ou por um relacionamento para limpar toda a nossa confusão. Nós devemos limpar a nossa própria confusão.
Uma relação com um(a) professor(a) espiritual ou com um parceiro(a) pode prover circunstâncias que ajudem, mas apenas quando o relacionamento é saudável. Quando é insalubre, só torna as coisas piores. Leva a mais confusão. No início, nós podemos estar em um profundo estado de negação, achando que o professor é perfeito, que o parceiro é perfeito, mas eventualmente nossa ingenuidade se desgasta. Quando nós começamos a ver as fraquezas na outra pessoa e que a outra pessoa não vai nos salvar de toda a nossa confusão, nós temos uma pane. Nos sentimos traídos. Nossa fé e confiança foram traídos. Este é um sentimento terrível! É muito importante tentar evitar isso desde o início. Nós precisamos praticar o Dharma; medidas preventivas. Nós devemos entender o que é possível e o que não é. O que está e o que não está ao alcance de um professor espiritual? Nós tomamos medidas de segurança para evitar essa pane.
Nós devemos desenvolver um estado mental que é livre de confusão. O oposto da confusão, o entendimento, irá prevenir a confusão de surgir. Nosso trabalho no Dharma é sermos introspectivos e atentos às nossas atitudes, às nossas emoções perturbadoras e aos nossos comportamentos neuróticos, compulsivos e impulsivos. Isso significa estar disposto a ver em nós mesmos coisas que não são tão legais, coisas que nós preferiríamos negar. Quando nós notamos coisas que estão causando nossos problemas ou são sintomas de nossos problemas, nós precisamos aplicar oponentes para superá-las. Tudo isso é baseado em estudo e meditação. Nós devemos aprender a identificar emoções e atitudes perturbadoras e de onde elas vêm.

Meditação

Meditação significa que nós praticamos aplicando os vários oponentes numa situação controlada de maneira que nós nos familiarizemos em como aplicá-los, para que nós possamos fazê-lo na vida real. Por exemplo, se nós ficamos zangados com os outros quando eles não agem da maneira como gostaríamos, na meditação nós pensamos sobre essas situações e tentamos olhá-las de uma perspectiva diferente. A outra pessoa está agindo de maneira discordante por diversas razões. Ele ou ela não está necessariamente nos azucrinando porquê não nos ama. Na meditação, nós tentamos dissolver tais atitudes: “Meu amigo não me ama mais pois ele(a) não me ligou.”
Se nós pudermos praticar através desse tipo de situação com um estado mental mais relaxado, compreensivo e paciente, então se a pessoa não nos liga por uma semana, nós não ficamos tão chateados. Quando nós começamos a ficar chateados, nós nos lembramos que essa pessoa é provavelmente muito ocupada e é egocêntrico pensar que nós somos a pessoa mais importante na vida dela. Isso nos ajuda a aliviar nossa chateação.

O Dharma é uma Ocupação em Tempo Integral

A prática do Dharma não é um hobby. Não é algo que nós fazemos por esporte ou como relaxamento. Nós não vamos até um centro de Dharma para sermos parte de um grupo ou para estarmos numa atmosfera social. Talvez seja muito legal ir lá, mas este não é o nosso propósito. Nós também não vamos a um centro de Dharma como um viciado tomando outra dose – uma dose de inspiração de um professor carismático e divertido, que faz com que nos sintamos bem. Se nós o fazemos, vamos para casa e logo nos sentimos entediados, precisando então de uma outra dose. O Dharma não é uma droga. Os professores não são uma droga. A prática do Dharma é um trabalho de tempo integral. Nós estamos falando sobre trabalhar nossas posturas com relação a tudo na vida. Se nós estamos trabalhando sobre desenvolver amor por todos os seres senscientes, por exemplo, nós precisamos aplicá-lo em nossa família. Muitas pessoas sentam em seus quartos meditando no amor, mas não conseguem se dar bem com seus pais ou seus parceiros. Isso é triste.

Evitando Extremos

Ao tentar aplicar o Dharma em situações na vida real em casa ou no trabalho, nós devemos evitar extremos. Um pólo dos extremos é pôr toda a culpa nos outros. O outro extremo pôr toda a culpa em nós mesmos. O que acontece na vida é muito complexo. Ambas as partes contribuem: os outros contribuem, nós contribuímos. Nós podemos tentar fazer os outros mudarem seus comportamentos e posturas, mas estou certo de que todos nós sabemos por experiência própria que isso não é algo fácil – especialmente se nos aproximamos de uma maneira superior e sagrada, acusando o outro de ser um pecador. É muito mais fácil mudarmos a nós mesmos. Apesar de que nós podemos fazer sugestões aos outros, se eles são receptivos e se eles não vão se tornar mais agressivos por causa da nossa sugestão, o principal trabalho é sobre nós mesmo.
Ao trabalhar com nós mesmos, temos de ter cuidado com outro par de extremos: sermos totalmente preocupados com nossos sentimentos e não estarmos atentos a eles de maneira alguma. O primeiro é uma preocupação narcisista. Nós estamos preocupados apenas com o que nós sentimos. Tendemos a ignorar o que os outros estão sentindo. Tendemos a pensar que o que nós sentimos é bem mais importante do que o que as outras pessoas estão sentindo. No outro caso, podemos estar completamente fora de contato com nossos sentimentos ou não sentir nada que seja, como se nossas emoções fossem alvejadas com Novocaína. Evitar estes extremos requer um delicado equilíbrio. Não é tão fácil.
Se nós estamos sempre observando a nós mesmos, se cria uma uma dualidade imaginada – nós mesmos e aquilo que estamos sentindo – e então não nos interessamos em nos relacionarmos com alguém ou estar com alguém. A verdadeira arte é se relacionar e agir de uma maneira natural e sincera, enquanto que parte da nossa atenção está na nossa motivação e assim por diante. Precisamos tentar fazer isso, entretanto, sem que seja uma maneira de agir descontínua, de maneira que nós não estejamos presentes com a outra pessoa. Eu devo apontar também que se nós estivermos checando a nossa motivação e sentimentos durante o processo de nos relacionarmos com alguém, às vezes ajuda dizer para a outra pessoa. Entretanto é muito narcisista pensar que nós devemos contar para a pessoa. Geralmente, outras pessoas não estão interessadas naquilo que estamos sentindo. É muito presunçoso achar que elas querem saber. Quando notarmos que estamos começando a agir com egoísmo, nós podemos simplesmente parar. Não precisamos anunciá-lo.
Outro par de extremos é pensar que nós somos de todo maus ou de todo bons. Se nós colocarmos muita ênfase nas nossas dificuldades, nossos problemas e nossas emoções perturbadoras, nós poderíamos começar a sentir que somos pessoas más. Isso muito facilmente se resulta em culpa. “Eu deveria praticar. Se não eu sou uma pessoa ruim.” Isso é uma fundação muito neurótica para a prática.
Nós também precisamos evitar o outro extremo, que é por muita ênfase nos nossos lados positivos. “Nós somos todos perfeitos. Apenas percebam suas naturezas de Buda. Tudo é maravilhoso.” Isso é muito perigoso, pois pode implicar que nós não precisamos desistir de nada, não precisamos parar nenhuma negatividade pois tudo de que precisamos é ver nossas naturezas de Buda. “Eu sou maravilhoso. Eu sou perfeito. Eu não tenho de parar meu comportamento negativo.” Precisamos de um equilíbrio. Se nos sentirmos muito para baixo, precisamos nos lembrar de nossas natureza de Buda; se estivermos blasé demais, devemos dar ênfase aos nossos lados negativos.

Assumindo a Responsabilidade

Basicamente, precisamos assumir a responsabilidade por nós mesmos: por nosso desenvolvimento e por nos livrarmos de nossos problemas. Claro que precisamos de ajuda. Não é fácil fazer tudo isso sozinhos. Nós podemos receber ajuda de professores espirituais ou de nossa comunidade espiritual, pessoas que pensam como nós e que estão trabalhando consigo mesmos e não culpando uns aos outros por seus problemas. É por isso que num relacionamento é importante que se compartilhe o mesmo tipo de atitude, particularmente a de não culpar o parceiro pelos problemas que surgem. Se ambos os parceiros estão culpando um ao outro, nada vai funcionar. Se apenas um dos parceiros está trabalhando consigo mesmo e o outro está apenas culpando, as coisas também não funcionam. Se nós já estivermos numa relação em que outra pessoa está nos acusando, porém nós estamos procurando onde nós estamos contribuindo ,não significa que nós tenhamos que terminar a relação, mas é mais difícil. Temos de tentar evitar nos tornarmos mártires nessa relação. “Eu estou suportando tudo isso! Como é difícil!” A coisa toda pode ser bem neurótica.

Recebendo Inspiração

A forma de apoio que podemos obter de um professor espiritual, de amigos e de uma comunidade espiritual que pensa semelhante a nós é geralmente chamada de “inspiração”. Os ensinamentos budistas colocam grande ênfase em receber inspiração da Jóia Tríplice, dos professores e assim por diante. A palavra tibetana é “jinlab” (byin-rlabs), usualmente traduzida como “bênçãos”, que é uma tradução inapropriada. Nós precisamos de inspiração. Nós precisamos de algum tipo de força para seguir em frente.
O caminho do Dharma não é fácil. Diz respeito a lidar com a feiura da vida. Nós precisamos de fontes de inspiração estáveis. Se nossas fontes de inspiração são professores contando estórias de milagres e coisas do gênero – sobre eles mesmos ou sobre outros na história do budismo – não será uma fonte de inspiração muito estável. Certamente que pode ser muito excitante, mas temos de examinar como isso está nos afetando. Para muitas pessoas, reforça um mundo de fantasia no qual nós estamos desejando salvação por meio de milagres. Imaginamos que algum grande mágico vai nos salvar com seus poderes milagrosos ou que nós vamos de repente desenvolver a capacidade de operar milagres. Temos de ser muito cautelosos no que diz respeito a estas estórias fantásticas. Elas podem inspirar a nossa fé e assim por diante, podendo ser de ajuda, mas não são fontes de inspiração estáveis. Precisamos de uma base sólida.
Um exemplo perfeito é aquele do Buda. O Buda não tentava “inspirar” as pessoas ou impressioná-las contando estórias fantásticas. Ele não saia por aí todo presunçoso abençoando as pessoas e coisas do gênero. A analogia que o Buda usou, repetida em toda a extensão dos ensinamentos budistas, é a de que um Buda é como um sol. O sol não tenta aquecer as pessoas. Naturalmente, pela maneira de ser do sol, ele espontaneamente aquece a todos. Apesar de nós nos empolgarmos ao ouvir uma estória fantástica ou por sermos tocados na cabeça por uma estátua ou receber uma fita vermelha para amarrar em volta do pescoço, essas não são coisas estáveis. Um fonte estável de inspiração é a maneira espontânea e natural que o professor tem como pessoa – seu caráter, a maneira como ele ou ela é como resultado de praticar o Dharma. Isso é que é inspirador e não um papel que alguém interpreta para nos entreter. Mesmo que isso não seja tão excitante quanto uma estória fantástica, nos dará um sentido de inspiração estável.
A medida que progredimos, podemos obter inspiração de nosso próprio progresso – não de ganhar poderes miraculosos, mas de como o nosso caráter mudou. Os ensinamentos sempre enfatizam regojizarmo-nos em nossas próprias ações positivas. É muito importante se lembrar que o progresso nunca é linear. Não fica melhor a cada dia. Uma das características do samsara é que os humores sobem e descem até que estejamos completamente livres do samsara, o que é um estado incrivelmente avançado. Devemos esperar que às vezes nos sentiremos alegres, às vezes tristes. Às vezes conseguiremos agir de maneira positiva e outras vezes, nossos hábitos neuróticos serão sobrepujantes. Será um caminho atribulado. Milagres não acontecem, geralmente.
Os ensinamentos sobre evitar as oito preocupações mundanas enfatizam não ficar se achando o “rei da cocada preta”, se as coisas vão bem e não entrar em depressão se as coisas vão mal. Isso é a vida. Precisamos olhar para os efeitos a longo prazo, não efeitos a curto prazo. Se nós estivemos praticando por cinco anos, por exemplo, comparado com cinco anos atrás, houve muito progresso. Mesmo que as vezes nós fiquemos chateados, se notamos que somos capazes de lidar com as situações com uma mente e coração mais calmos e claros, isso indica que nós fizemos algum progresso. Isso é inspirador. Não é dramático, apesar de que gostaríamos que fosse dramático e de nós nos empolgarmos com performances dramáticas. É uma inspiração estável.

Sendo Prático

Precisamos ser bastante práticos e com os pés no chão. Quando fazemos práticas de purificação como a prática de Vajrasattva, é importante não pensar nele como um “São Vajrasattva” nos purificando. Não é uma figura externa, um grande santo que irá nos salvar e nos abençoar com a purificação. Esse não é o processo de maneira alguma. Vajrasattva significa a pureza natural da mente de clara luz, que não é inerentemente maculada pela confusão. A confusão pode ser removida. É quando reconhecemos a natureza pura da mente através de nossos esforços, que podemos deixar de lado a culpa, potenciais negativos e assim por diante. Isso possibilita ao processo de purificação funcionar.
Além disso, ao realizar todas essas práticas e tentar colocar o Dharma em nossas vidas diárias, precisamos reconhecer e discernir o nível em que estamos. É crucial não ser pretensioso ou achar que nós precisamos estar num nível mais alto do que aquele onde estamos no presente.
Abordando o Dharma Vindo de Antecedentes Católicos
A maioria de nós aqui tem uma procedência católica. Na medida que abordamos a Dharma e começamos a estudar, não sentimos a necessidade de desistir do catolicismo e nos converter ao budismo. Entretanto, é importante não misturar as duas práticas. Nós não fazemos três prostrações ao altar antes de nos sentarmos na igreja. Da mesma forma, quando fazemos uma prática budista, nós não visualizamos a Virgem Maria, nós visualizamos figuras-de-Budas. Nós praticamos cada um individualmente. Quando vamos à igreja, simplesmente vamos à igreja; quando fazemos uma meditação budista, fazemos uma meditação budista. Existem muitas características em comum, tais como a ênfase no amor, ajudar os outros etc. Não existe conflito nesse nível básico. Se praticamos amor, caridade e a ajuda ao próximo, somos tanto bons católicos quanto bons budistas. Eventualmente porém, nós teremos de fazer uma escolha, mas apenas quando estamos prontos para colocar nosso total esforço em fazer um tremendo progresso espiritual. Se nós vamos subir até o último andar de um edifício, nós não podemos subir por duas escadarias ao mesmo tempo. Penso que esta é uma imagem muito útil. Se estamos trabalhando apenas no andar térreo, no lobby, ótimo. Não temos de nos preocupar com isso. Podemos nos beneficiar de ambos.

Evitando Lealdade Deslocada

Ao aplicar o Dharma em nossa vidas, temos de ser cuidadosos para não rejeitarmos nossas religiões nativas como sendo ruins ou inferiores. Isso é um grande erro. Poderíamos então nos tornar budistas fanáticos e anti-católicos fanáticos, por exemplo. As pessoas fazem isso com o comunismo e com a democracia também. Um mecanismo psicológico chamado lealdade deslocada entra em cena. Existe uma tendência de querermos ser leais as nossas famílias, aos nossos antecedentes etc, então queremos ser leais ao catolicismo apesar de havermos rejeitado-o. Se não somos leais aos nossos antecedentes e os rejeitamos totalmente como sendo ruins, achamos que somos completamente ruins. Porque isso é extremamente inquietante, nós inconscientemente sentimos que precisamos achar algo em nosso passado ao qual possamos ser fieis.
A tendência é inconscientemente sermos leais a um certo aspecto menos benéfico de nosso passado. Por exemplo, podemos rejeitar o catolicismo, mas trazemos um forte medo dos infernos para dentro do budismo. Uma amiga minha era uma católica muito fervorosa, adotou com muita ênfase o budismo e depois teve uma crise existencial. “Eu desisti do catolicismo e agora eu vou para o inferno católico; mas se eu desistir do budismo e voltar ao catolicismo, irei para o inferno budista!” Apesar de soar engraçado, era um problema muito sério para ela.
Nós geralmente trazemos inconscientemente certas atitudes do catolicismo para a prática budista. As mais comuns são culpa e buscar por milagres e por outros seres que possam nos salvar. Se nós não praticamos, sentimos que deveríamos praticar, e se não o fazemos, nos sentimos culpados. Essas idéias não são de nenhuma ajuda. Precisamos reconhecer quando estamos fazendo isso. Devemos olhar para nossos antecedentes e perceber os aspectos positivos de maneira a sermos fieis às características positivas ao invés das negativas. Ao invés de pensarmos, “Eu herdei culpa e busca por milagres.” podemos pensar “Eu herdei a tradição católica do amor, caridade e ajuda aos desafortunados.”
Nós podemos fazer a mesma coisa no que tange as nossas famílias. Podemos rejeitá-los e então sermos inconscientemente leais às suas tradições negativas, ao invés de sermos conscientemente leais às positivas. Se nós reconhecermos por exemplo, que nós somos muito gratos pelo passado católico que eles nos deram, então podemos seguir nossos próprios caminhos sem conflito sobre nosso passado e sem sentimentos negativos constantemente prejudicando nosso progresso.
É importante tentar entendermos a validade psicológica disso. Se pensarmos em nosso passado – nossas famílias, nossa religião de nascimento ou o que quer que seja – como negativos, tendemos a ter atitudes negativas com relação a nós mesmos. Por outro lado, se podemos reconhecer as coisas positivas em nossos antecedentes e nosso passado, tendemos a ter atitudes positivas com nós mesmos. Isso nos ajuda a sermos muito mais estáveis em nossa prática espiritual.

Últimas Conclusões

Precisamos proceder devagar, passo-a-passo. Quando ouvimos ensinamentos muito avançados, vamos a iniciações tântricas e afins, apesar de grandes mestres do passado terem dito “Tão logo você ouça um ensinamento, imediatamente ponha-o em prática”, precisamos determinar se algo é muito avançado para nós ou se é algo que nós podemos colocar em prática no presente. Se for muito avançado, nós temos de discernir os passos que vamos precisar tomar para nos prepararmos de maneira a conseguirmos pô-lo em prática, e então seguir esses passos. Em resumo, como disse um de meus professores, Geshe Ngawang Dhargyey “Se nós praticarmos métodos fantasiosos, teremos resultados fantasiosos; se praticarmos métodos práticos, teremos resultados práticos.”

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